Friday, November 18, 2016

O escritor brasileiro dos heterônimos


Pedro J. Bondaczuk

A obra literária de Humberto de Campos é assombrosa, vastíssima e copiosa o que, no caso desse escritor, desmente a constatação de que raramente a qualidade acompanha a quantidade, em qualquer atividade humana e muito menos na Literatura. Reproduziu, no Brasil, guardadas as devidas proporções, o que Fernando Pessoa fez em Portugal. Ou seja, lançou mão de pelo menos oito pseudônimos em sua obra, que podem ser comparados aos heterônimos do magnífico gênio lusitano. Não tenho em mãos sua bibliografia completa, mas estou convicto que ele publicou (ou outros publicaram dele) pelo menos quatro dezenas de livros. Uma quantidade considerável deles foi publicada postumamente. Até não faz muito, volta e meia alguma editora lançava um novo livro, inédito, de Humberto de Campos. Desconfio que se algum pesquisador arguto se dispuser a pesquisar sua produção de textos em jornais, obterá material mais do que suficiente para a publicação de uma quantidade bastante razoável de novas obras, das que jamais publicadas. E todas de excelente qualidade.

Ocorre que pouquíssimos redatores – se é que houve algum que se lhe comparasse – tiveram tanta visibilidade na imprensa escrita quanto esse maranhense talentoso e criativo. Ainda mais escrevendo textos literários, como crônicas, contos, críticas de livros, memorialismo e vai por aí afora. Hoje, então, quando os escritores de ofício foram praticamente “banidos” das redações de jornais, não há termos de comparação. Provavelmente está aí a explicação para o fato de Humberto de Campos nunca ter escrito (e nem publicado) um único romance, obra de fôlego que demanda tempo para ser escrita. E isso era o que menos esse jornalista obcecado tinha: tempo Nos primeiros anos, essa assombrosa produção deveu-se ao fato dele ser “novidade”, tanto na imprensa, quanto na Literatura. Suas crônicas e contos surpreenderam, pela alta qualidade, tanto os leitores quanto os donos de jornais. E “choveram” solicitações de todas as partes do País, que ele se prestou a atender. Isso até 1930 quando, já doente, mas esbanjando prestígio, Humberto de Campos escrevia, escrevia e escrevia, mais por deleite, e não por necessidade.

A partir da tomada do poder por parte de Getúlio Vargas, isso mudou drasticamente. O então popularíssimo jornalista, escritor e político maranhense teve o terceiro mandato consecutivo na Câmara de Deputados cassado pelo caudilho gaúcho. Ficou, portanto, sem o salário de parlamentar que, bem ou mal, era considerável fonte de receita (embora naquele tempo nem mesmo fosse tão “polpudo” quanto os dos representantes do povo atuais). Além disso, havia a doença, que evoluía a olhos vistos, e exigia gastos e mais gastos com médicos, farmácia etc.etc.etc. Isso sem falar na família, mulher e três filhos, cujas despesas,  convenhamos, não são nada modestas, por mais econômicos que seus membros sejam.

Subitamente, Humberto de Campos entrou em uma fase de grandes dificuldades financeiras. Por mais que vários jornais que lhe solicitassem textos – e estes não diminuíram, mas aumentaram – os ganhos que obtinha com o jornalismo eram insuficientes para pagar sequer metade de suas contas. Foi quando a providencial ajuda dos amigos livrou-o do sufoco financeiro. Por interferência direta de alguns integrantes do Governo Provisório, que tinham profunda admiração por seu talento, Humberto de Campos foi nomeado Inspetor de Ensino no Rio de Janeiro. E, meses mais tarde, foi alçado ao posto de diretor da Fundação Ruy Barbosa. Esses dois novos empregos aliviaram sua situação econômica, mas (óbvio) não diminuíram sua carga de trabalho. Pelo contrário, aumentaram-na, e muito. E justo numa época que a doença fazia escalada já não de um mês para outro, mas de um dia para outro. Imaginem seu sacrifício, tendo que escrever crônicas e mais crônicas, contos e mais contos, não raro entrando pela madrugada, com a visão a cada dia pior, enxergando, crescentemente, menos! É isso que eu mais valorizo nele. Ou seja, a sua garra, o seu espírito de luta, a sua determinação de jamais se entregar, enquanto pudesse resistir.

O mais notável de tudo isso é que, apesar desses obstáculos, tanto de ordem física, quanto psicológica, a qualidade de sua produção não sofreu o menor “arranhão”. Não sei se no lugar dele eu conseguiria essa façanha. Provavelmente, não, embora seja apaixonado, vidrado, obcecado pelo texto quer jornalístico (embora não tanto), quer literário (sobretudo). Humberto de Campos assinou, como citei no início destes comentários, muitas crônicas e contos com pseudônimos. Em minhas pesquisas detectei oito deles, embora possa ter escapado algum. Guardadas as devidas proporções, reitero, comparo-os aos heterônimos de Fernando Pessoa. É verdade que não fez como o escritor português que, para cada um deles, “criou” uma personalidade própria, com estilos de escrever completamente diferentes um do outro. Os pseudônimos utilizados por Humberto de Campos foram (salvo algum engano meu): Conselheiro XX, Almirante Justino Ribas, Luís Phoca, João Caetano, Giovani Morelli, Batu-Allah, Micromegas e Hélios.

Por tudo isso (e mais o que pretendo trazer à baila oportunamente) é que esse jornalista, político e escritor foi personagem único, sem similar, quer no jornalismo, quer na política e quer, principalmente, na Literatura. Conseguiu “casar” quantidade com qualidade, tendo que superar obstáculos como raríssimos já enfrentaram em suas vidas. Não pode, pois, ser esquecido nem por esta geração e nem pelas que hão de vir algum dia.                       

         

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