Doença não reduziu a
produção de Humberto de Campos
Pedro
J. Bondaczuk
A doença que acometeu
Humberto de Campos (a acromegalia), descoberta, tardiamente, em 1928, e tratada
inadequadamente, dados os parcos recursos médicos de então, influenciaram no
teor da sua produção literária. Pudera! A maioria dos escritores, em situação
idêntica, sequer continuaria escrevendo. Se já não é nada fácil escrever quando
estamos saudáveis e “vendendo saúde”, imaginem fazê-lo com qualquer tipo de
dor, mesmo que se trate de simples e trivial dorzinha de cabeça! É um horror!
Recorde-se que então não havia nem sonho de computador, essa maravilha
tecnológica que facilita tanto a tarefa dos redatores atuais. Os textos,
naquela primeira metade do século XX, eram “arrancados na unha”, redigidos, a
maior parte deles, à mão. As revisões, os cortes e os acréscimos na fase de
acabamento eram um drama. Cada modificação feita exigia que tudo o que havia
sido escrito fosse copiado novamente. Um simples texto, que hoje demanda quinze
minutos, se tanto, do redator experiente, exigia horas e horas de concentração
e de labuta.
Mesmo as máquinas de
escrever de então estavam anos-luz de distância da praticidade das que tínhamos
nos anos 90 do século passado, quando os computadores pessoais começaram a se
popularizar e elas viraram peças de museu. Eram grandonas, porém frágeis, e
quebravam com a maior facilidade. Ora era alguma letra que se soltava da solda
e que precisava ser reparada. Ora era a fita que dava problema. Isso sem contar
que eram barulhentas e tiravam a concentração do redator. Os meios disponíveis
de redação eram ineficientes e irritantes em condições normais, quando nada e
ninguém incomodavam. Imaginem o tormento de ter que redigir textos – e não
somente um, mas vários punhados deles, e todos os dias, para atender
compromissos inadiáveis – sentindo-se indisposto e, pior, com alguma dor
incomodando! Uma vez ou outra, qualquer redator consegue essa façanha. Mas por
semanas, meses e anos?!! São pouquíssimos!
É mais um motivo (para
mim, o principal) para valorizar ainda mais a obra de Humberto de Campos. A
doença afetou o teor de seus textos? Provavelmente, sim! Pudera! É uma
influência até subconsciente. Seus temas, nos seis anos que teve que “conviver”
com a doença, foram mais sombrios, mais pessimistas, mais críticos. Alguns
contos, inclusive, lembram (posto que remotamente) os assuntos tratados pelo
norte-americano Edgar Alan Poe. Todavia, a acromegalia não o fez reduzir a
produção, pelo contrário. Afinal, tinha que fazer face às crescentes despesas
decorrentes da doença (médicos, remédios etc.etc.etc.). E quem conhece sua obra
sabe que seus problemas de saúde não influenciaram em nada a “qualidade” do que
escreveu. Seus livros continuavam vendendo aos borbotões, mesmo com o
pessimismo que impregnou seus enredos e apesar dos temas sombrios que abordou.
Metade da sua obra foi produzida nos seis anos em que a doença o atormentou (e
acabou abreviando, em muito, sua vida).
Apesar de haver
publicado por volta de duas dezenas de livros nesse período, muita coisa ficou
inédita. Tanto isso é verdade, que diversas editoras – entre as quais me lembro
da José Olympio, da Mérito, da W. M. Jackson e da Opus – lançaram sucessivas
edições de suas “obras completas” até 1983. Completas?! Acho que não. Estou
convicto que há muitos e muitos e muitos textos de Humberto de Campos ainda
inéditos, suficientes para preencher pelo menos meia dúzia (ou mais) de
volumes. O escritor maranhense passou a preocupar-se, por exemplo, com a morte,
que pressentia iminente. Criou personagens rejeitados pela sociedade por
deficiências que o preconceito social considerava “monstros”.
Pincei, por exemplo, em
um de seus livros (“Um sonho de pobre”, de memórias, póstumo, publicado em
1935), um texto que considero revelador desse seu período de angústia. Seu
título é “Reflexões sobre a morte”. Está na página 17, capítulo 2, em que
escreve:
“--- Mestre, o que é a
morte? – pergunta a Confúcio, um dia, um de seus discípulos.
E o filósofo:
--- Como poderemos nós
saber o que é a morte se ainda não sabemos o que é a vida?”.
Porventura sabemos?
Claro que não! Há milhões de conjecturas e de teorias a respeito, mas saber,
saber mesmo, sem sombra de dúvidas, ninguém sabe. Todavia, nesse mesmo livro,
ele, que sempre foi tido e havido como implacável e ácido crítico do
comportamento do nosso povo, traçou um perfil sumamente positivo do brasileiro
comum. Foi no texto intitulado “O príncipe encantador”, página 148, capítulo
20, primeiro parágrafo. Escreveu: “Nenhum povo da Terra é tão acentuadamente
democrata como é o brasileiro. As condições da vida e da formação política
nivelaram, aqui, as raças, as castas, os indivíduos. Por mais simples, mais
pobre, mais humilde, nenhum homem se sente inferior ao seu vizinho. O
sentimento de igualdade prometido nas leis permanece real, perfeito,
inalterável, no fundo das consciências. Só se curva, entre nós, quem se quer curvar.
A subserviência é, aqui, facultativa e só a exerce quem tem, efetivamente, a
volúpia da servidão”. Só não sei se Humberto de Campos escreveria tudo isso
sobre a geração atual de brasileiros, em um Brasil vivendo mais uma de suas
tantas e periódicas crises institucionais. Acredito que não!
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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