De caixeiro-viajante a
seringueiro
Pedro
J. Bondaczuk
A julgar pelo seu
próprio testemunho, o período em que Humberto de Campos permaneceu em São Luiz,
para onde foi levado após a morte da mãe, foi um dos mais felizes da sua vida.
O escritor foi entregue aos cuidados do comerciante José Dias de Matos, que
praticamente o adotou e sempre o tratou como filho. Ali, foi cuidado e amado.
Ali foi devidamente instruído. Ali aprendeu uma profissão, a de
caixeiro-viajante, que exerceu ainda em tenra idade. Ali alimentou, inclusive,
o sonho de tornar-se sócio de seu tutor e patrão. Nas páginas 7 a 12, do seu
segundo livro de memórias, intitulado “Memórias inacabadas”, Humberto de Campos
escreveu o seguinte sobre essa fase da sua vida:
“Quando
o século XX amanheceu, encontrou-me perfeitamente identificado com a vida
comercial, e contente com ela. O trabalho tornara-se, para mim, não uma
obrigação, mas um prazer; não um sacrifício, mas uma alegria. Todas as minhas
horas pertenciam ao homem generoso que me dera com o pão um tratamento
paternal. Meu estômago era grato à sua mesa, e minha cabeça ao seu teto. Mais
profundo era, porém, á sua bondade severa, e sempre igual, o reconhecimento do
meu coração, de órgão que já se havia acostumado, quase, ao escárnio e ao desprezo
(...)”. Humberto de Campos chegou à casa do seu tutor aos
onze anos de idade, em 1897. Começou, então, a ser instruído nos segredos do
comércio. De início, eram-lhe atribuídas apenas pequenas tarefas. Curioso e
aplicado, como era, e, sobretudo, observador, aprendeu depressa os macetes
dessa atividade. Quando o século XX começou, estava com 14 anos, recém entrado
na adolescência. Mas já tinha conhecimento do comércio que muito adulto, com
idêntico tempo de “estágio”, não tinha. Hoje, Humberto de Campos não teria essa
oportunidade. A legislação proíbe, salvo em casos especiais e bastante
específicos, o emprego de menores do trabalho. Claro que nem todos respeitam a
legislação. Mas naque3le tempo era permitido e até comum.
Em outro trecho de
“Memórias inacabadas”, o escritor revela: “(...)
Esse convívio enchia-me de esperanças. Comecei a alimentar sonhos de vitória,
dentro das possibilidades da minha vida. Via-me sócio de José Dias de Matos e
apontado, na praça, como um dos donos da mercearia. Fazia cálculos sobre a nova
firma, da qual constaria o meu nome. E, tirando o lápis de trás da orelha,
escrevia, seguidamente, em uma folha de papel de embrulho, que depois
amarrotava e punha fora: ‘Matos, Veras & Cia... Matos, Veras & Cia...
Matos, Veras & Cia’. E puxava, por baixo, um rabisco elegante, que
engrossaria à proporção que se desenvolvia da direita para a esquerda (...)”.
Seu espírito inquieto,
porém, não lhe permitia acomodações. Os hormônios da juventude fervilhavam em
seu interior, ofuscando a voz da razão, ou seja, dos neurônios. A grande
floresta amazônica, bem ali, entrando até mesmo em partes do Maranhão, atraía-o
como poderoso imã. Despertava, em Humberto de Campos uma ânsia incontrolável
por aventuras. A mente, extremamente fantasiosa e imaginativa, impelia-o à cata
de emoções fortes. Era o arroubo da adolescência, esse que faz, nesse período
tão importante, mas não devidamente valorizado da nossa vida, com que nos
sintamos poderosos, invulneráveis e indestrutíveis. A Amazônia vivia, então, o auge
do ciclo da borracha, iniciado em 1879, que só teria declínio em 1912, para ter
posterior, e fortuito, renascimento entre 1942 e 1945.
O precioso látex vinha
fazendo a fortuna de algumas dezenas, quiçá centenas de empreendedores. Manaus,
a capital amazonense, vivia o auge do progresso, com dinheiro rolando à solta.
Esse era o Eldorado dos jovens de várias partes do País, em especial do
Nordeste, assolado por periódicas e devastadoras secas. Vivêssemos aquela época
e fôssemos jovens, possivelmente sentiríamos a mesma atração. Foi assim que
certo dia Humberto de Campos resolveu jogar tudo para o ar, abandonar a
segurança da casa de seu tutor, abrir mão do sonho de se tornar seu sócio
naquele pequeno comércio de São Luiz, e partir para a Amazônia, para tentar a
sorte grande nos seringais amazônicos. Não ouviu as prudentes ponderações dos
mais velhos e nem ponderou as possibilidades que teria se ficasse. Pudera! Era
jovem! O “vírus” da aventura penetrara-lhe avassalador no sangue.
Por mais saudável e
ousado que Humberto de Campos fosse na ocasião, a vida de seringueiro não
combinava de jeito nenhum com a formação refinada daquele rapaz, que aliás até
já ensaiava seus primeiros textos literários, no caso poemas, carregados de
fantasias. A brutalidade dos jagunços, com os quais iria conviver, era violento
contraste com sua sensibilidade de potencial artista. Sobre os seringais,
Humberto de Campos deixou para a posteridade este soneto, forte e expressivo,
que pincei de seu livro “Poesias Completas” (editado em 1933):
“Profano
Anchieta que um mau sonho afaga
Para
que o rito se extinga ou quebre,
Entras
a selva em que teu ser se apaga,
E
ergues, para teu templo, o teu casebre.
No
inverno, quando o seringal se alaga,
Não
se vê na missão quem não celebre,
Com
hóstias de quinino, e boca em praga,
A
missa arquilitúrgica da febre.
És
missionário sem burel e estola;
Tens
na mão a semente das cidades,
Que
semeiam sem Cristo e sem Loyola.
Basta,
para um sermão, que a flecha sifle...
---
Como são convincentes as verdades
Dos
dezoito evangelhos do teu rifle!”
Para a felicidade dos
amantes do bom jornalismo e da boa literatura, no entanto, a aventura amazônica
de Humberto de Campos nos seringais durou pouco tempo. É verdade que ele não
fez a fortuna com que sonhou. Poucos dos milhares de aventureiros que fizeram
essa opção conseguiram mais do que o mero sustento, assim mesmo precaríssimo,
ordinário e miserável. Mas aquele jovem sonhador conseguiu algo mais duradouro,
posto que intangível, do que dinheiro: experiência, que o ajudaria, sem dúvida,
a se tornar o grande, o magnífico, o consagrado escritor que foi.
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