Thursday, November 10, 2016

De caixeiro-viajante a seringueiro


Pedro J. Bondaczuk

A julgar pelo seu próprio testemunho, o período em que Humberto de Campos permaneceu em São Luiz, para onde foi levado após a morte da mãe, foi um dos mais felizes da sua vida. O escritor foi entregue aos cuidados do comerciante José Dias de Matos, que praticamente o adotou e sempre o tratou como filho. Ali, foi cuidado e amado. Ali foi devidamente instruído. Ali aprendeu uma profissão, a de caixeiro-viajante, que exerceu ainda em tenra idade. Ali alimentou, inclusive, o sonho de tornar-se sócio de seu tutor e patrão. Nas páginas 7 a 12, do seu segundo livro de memórias, intitulado “Memórias inacabadas”, Humberto de Campos escreveu o seguinte sobre essa fase da sua vida:

“Quando o século XX amanheceu, encontrou-me perfeitamente identificado com a vida comercial, e contente com ela. O trabalho tornara-se, para mim, não uma obrigação, mas um prazer; não um sacrifício, mas uma alegria. Todas as minhas horas pertenciam ao homem generoso que me dera com o pão um tratamento paternal. Meu estômago era grato à sua mesa, e minha cabeça ao seu teto. Mais profundo era, porém, á sua bondade severa, e sempre igual, o reconhecimento do meu coração, de órgão que já se havia acostumado, quase, ao escárnio e ao desprezo (...)”. Humberto de Campos chegou à casa do seu tutor aos onze anos de idade, em 1897. Começou, então, a ser instruído nos segredos do comércio. De início, eram-lhe atribuídas apenas pequenas tarefas. Curioso e aplicado, como era, e, sobretudo, observador, aprendeu depressa os macetes dessa atividade. Quando o século XX começou, estava com 14 anos, recém entrado na adolescência. Mas já tinha conhecimento do comércio que muito adulto, com idêntico tempo de “estágio”, não tinha. Hoje, Humberto de Campos não teria essa oportunidade. A legislação proíbe, salvo em casos especiais e bastante específicos, o emprego de menores do trabalho. Claro que nem todos respeitam a legislação. Mas naque3le tempo era permitido e até comum.

Em outro trecho de “Memórias inacabadas”, o escritor revela: “(...) Esse convívio enchia-me de esperanças. Comecei a alimentar sonhos de vitória, dentro das possibilidades da minha vida. Via-me sócio de José Dias de Matos e apontado, na praça, como um dos donos da mercearia. Fazia cálculos sobre a nova firma, da qual constaria o meu nome. E, tirando o lápis de trás da orelha, escrevia, seguidamente, em uma folha de papel de embrulho, que depois amarrotava e punha fora: ‘Matos, Veras & Cia... Matos, Veras & Cia... Matos, Veras & Cia’. E puxava, por baixo, um rabisco elegante, que engrossaria à proporção que se desenvolvia da direita para a esquerda (...)”.

Seu espírito inquieto, porém, não lhe permitia acomodações. Os hormônios da juventude fervilhavam em seu interior, ofuscando a voz da razão, ou seja, dos neurônios. A grande floresta amazônica, bem ali, entrando até mesmo em partes do Maranhão, atraía-o como poderoso imã. Despertava, em Humberto de Campos uma ânsia incontrolável por aventuras. A mente, extremamente fantasiosa e imaginativa, impelia-o à cata de emoções fortes. Era o arroubo da adolescência, esse que faz, nesse período tão importante, mas não devidamente valorizado da nossa vida, com que nos sintamos poderosos, invulneráveis e indestrutíveis. A Amazônia vivia, então, o auge do ciclo da borracha, iniciado em 1879, que só teria declínio em 1912, para ter posterior, e fortuito, renascimento entre 1942 e 1945.

O precioso látex vinha fazendo a fortuna de algumas dezenas, quiçá centenas de empreendedores. Manaus, a capital amazonense, vivia o auge do progresso, com dinheiro rolando à solta. Esse era o Eldorado dos jovens de várias partes do País, em especial do Nordeste, assolado por periódicas e devastadoras secas. Vivêssemos aquela época e fôssemos jovens, possivelmente sentiríamos a mesma atração. Foi assim que certo dia Humberto de Campos resolveu jogar tudo para o ar, abandonar a segurança da casa de seu tutor, abrir mão do sonho de se tornar seu sócio naquele pequeno comércio de São Luiz, e partir para a Amazônia, para tentar a sorte grande nos seringais amazônicos. Não ouviu as prudentes ponderações dos mais velhos e nem ponderou as possibilidades que teria se ficasse. Pudera! Era jovem! O “vírus” da aventura penetrara-lhe avassalador no sangue.

Por mais saudável e ousado que Humberto de Campos fosse na ocasião, a vida de seringueiro não combinava de jeito nenhum com a formação refinada daquele rapaz, que aliás até já ensaiava seus primeiros textos literários, no caso poemas, carregados de fantasias. A brutalidade dos jagunços, com os quais iria conviver, era violento contraste com sua sensibilidade de potencial artista. Sobre os seringais, Humberto de Campos deixou para a posteridade este soneto, forte e expressivo, que pincei de seu livro “Poesias Completas” (editado em 1933):

“Profano Anchieta que um mau sonho afaga
Para que o rito se extinga ou quebre,
Entras a selva em que teu ser se apaga,
E ergues, para teu templo, o teu casebre.

No inverno, quando o seringal se alaga,
Não se vê na missão quem não celebre,
Com hóstias de quinino, e boca em praga,
A missa arquilitúrgica da febre.

És missionário sem burel e estola;
Tens na mão a semente das cidades,
Que semeiam sem Cristo e sem Loyola.

Basta, para um sermão, que a flecha sifle...
--- Como são convincentes as verdades
Dos dezoito evangelhos do teu rifle!”

Para a felicidade dos amantes do bom jornalismo e da boa literatura, no entanto, a aventura amazônica de Humberto de Campos nos seringais durou pouco tempo. É verdade que ele não fez a fortuna com que sonhou. Poucos dos milhares de aventureiros que fizeram essa opção conseguiram mais do que o mero sustento, assim mesmo precaríssimo, ordinário e miserável. Mas aquele jovem sonhador conseguiu algo mais duradouro, posto que intangível, do que dinheiro: experiência, que o ajudaria, sem dúvida, a se tornar o grande, o magnífico, o consagrado escritor que foi.      
             

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