Morte
pelo ridículo
Pedro J. Bondaczuk
"O ridículo mata e mata sem sangue". Esta
sábia constatação foi feita por um dos mais profundos analistas da vida carioca
do início do século XX, o escritor Afonso Henrique de Lima Barreto. Sua vida
foi das mais trágicas, mais sofridas, mais dramáticas, tendo ele sido,
inclusive, internado em um manicômio para curar-se de alcoolismo. Observador
arguto e dotado de grande capacidade de reproduzir em texto comportamentos e
modos de falar do povo, particularmente dos pobres, dos boêmios, dos
alcoólatras e dos pequenos burgueses, foi vítima de preconceito por ser negro.
Só muito tempo depois de morto (em 1922) ‚ que os críticos e a intelectualidade
brasileira reconheceram o seu valor, embora não tenham ainda feito justiça ao
seu talento e à sua importância para a cultura nacional.
Além de quatro romances, dois dos quais clássicos da
nossa literatura ("Recordações do Escrivão Isaías Caminha",
"Triste Fim de Policarpo Quaresma", "Numa e a Ninfa" e
"Vida e Morte de M. J. Gonzaga"), deixou artigos e crônicas, reunidos
nas coletâneas "Os Bruzundungas, Feiras e Mafuás, Vida Urbana e
Marginália". Lima Barreto, portanto, ao chegar à conclusão de que o
ridículo mata lenta, mas seguramente, qualquer reputação, sabia do que estava falando.
O alcoolismo levou-o a sentir na pele essa situação. Muitos
pseudo-intelectuais, no entanto, não sabem disso. Muitos pavões enfatuados e
vazios também não. Muitos valentões, que se julgam senhores do mundo, idem.
Muitos atores canastrões, ou cantores desafinados, ou compositores de ocasião,
ou poetastros, ou romancistas de água com açúcar, etc, etc, etc, igualmente não
percebem quando representam esse papel. São cegados pela vaidade. Perderam a
capacidade de enxergar o óbvio, o que todos vêem, o que está claro e cristalino
e que só eles não se dão conta. Estão mortos (sem sangue) pelo ridículo, mas
esqueceram de avisá-los.
Nada apavora mais quem vive de escrever do que este
perigo. Percebendo ou não, todos estamos sujeitos a situações, digamos, vexatórias.
Uma escolha inadequada de tema, uma abordagem desastrada, piegas ou pueril de
um assunto qualquer, uma ilusão acerca de uma suposta qualidade que apenas o
autor vislumbra e zás...! O infeliz resvala, rodopia e vai ao chão. Leva um
tombo, às vezes impossível de se recuperar. Pior ridículo é quando quem está
fazendo esse papel sequer percebe. Aí é trágico. O infeliz é alvo de cochichos,
de risadinhas, de anedotas e de chacotas, todos pelas costas. E quando alguma
alma piedosa o alerta, em vez de agradecer, mostra-se ainda mais agressivo com
quem lhe prestou esse favor. Sente-se ofendido. Assume ares de quem teve a dignidade ferida. Torna-se inimigo de quem o
alertou. Os extremamente vaidosos agem invariavelmente dessa maneira.
O escritor paulista do século XVIII, Matias Aires
Ramos da Silva (quase esquecido), afirma: "Trazem os homens entre si uma
contínua guerra de vaidade; e conhecendo todos a vaidade alheia, nenhum conhece
a sua: a vaidade é como um instrumento, que tira dos nossos olhos os defeitos
próprios, e faz com que apenas os vejamos em uma distância imensa, ao mesmo
tempo que expõe à nossa vista os defeitos dos outros ainda mais perto, e
maiores do que são". Não há caminho mais curto e mais seguro para o
ridículo do que este. Ou do que atacar publicamente, com argumentos pueris (ou
mesmo lógicos), quem tenha reputação solidamente firmada mediante uma obra
consensualmente admitida como de qualidade. É o que ocorre com muitos críticos,
acostumados apenas a jargões e lugares-comuns ao avaliar um livro, uma peça, um
filme, um quadro ou uma escultura e acham que sua função é unicamente falar mal
das produções alheias. Ou, o que é pior, quem se desmancha em elogios ao que é
ostensivamente ruim.
Quantas vezes não nos sentimos mal, como se os
atingidos estivéssemos sendo nós, ao testemunharmos alguém representando um
papel ridículo! Fazendo um discurso tolo, eivado de referências incorretas ou
inadequadas, por exemplo. Atuando em uma peça teatral e esquecendo a fala, ou
com dicção ruim, ou entrando em hora errada e fora do contexto, ou tropeçando e
caindo no palco etc. Aliás, todos os que se apresentam em público correm estes
riscos. Daí a necessidade de um contínuo autopoliciamento. Daí ser preciso
contar com grande dose de humildade para nunca se achar o perfeito, o
intocável, o superior aos outros. Daí ser indispensável rigorosa e permanente
autocrítica, para corrigir os defeitos. E mesmo com tudo isso, nunca se está a
salvo dessa "morte súbita", quase sempre sutil e indolor, causada pelo
ridículo.
No comments:
Post a Comment