Do céu ao inferno em
quatro décadas
Pedro
J. Bondaczuk
A vida de Humberto de
Campos foi “dividida” em duas fases distintas. Uma, que vai do nascimento, ou
seja, de 1886, até 1928, época de uma “coleção” de sucessos pessoais (e também
sociais, profissionais e literários), ou seja, um período de alegrias e de
superação. Foi nele, por exemplo, que ele descobriu sua vocação, que se consolidou
no jornalismo (e em plena Capital Federal) e que lançou um grande número de
livros, que tiveram tiragens inusitadamente elevadas para a época. A outra
fase, a do “inferno”, começou em 1928 e culminou com sua morte prematura, em
1934.
Destaque-se que em 1919,
Humberto de Campos foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, para ocupar
a cadeira de número 20, cujo membro fundador foi Salvador de Mendonça, que tem
como patrono Joaquim Manuel de Macedo, ocupada, atualmente, pelo advogado e
jornalista potiguar Murilo Melo Filho. Sete anos depois, em 1926, aos 40 anos,
assumiu a presidência da casa fundada por Machado de Assis. E não foi só isso.
Nesse mesmo ano, foi eleito, por larga margem de votos, “Príncipe dos
Prosadores Brasileiros”. O jornalista e escritor (ou vice-versa) “nadava de
braçada” no oceano do sucesso nesse período. Parece que eleição era seu forte.
Tanto que, em 1920, foi eleito deputado federal pelo Maranhão e era visto como
candidato natural a governador do seu Estado natal, tamanho era o prestígio de
que gozava. Foi nessa época, em 1927, que lançou uma de suas obras mais
polêmicas, “O Brasil anedótico”, coletânea de pequenos contos humorísticos, em
onze volumes, em que ironizou figuras políticas e literárias brasileiras.
Trouxe a público muitas e muitas coisas que esses personagens certamente
gostariam que fossem para sempre esquecidas. A reação, como seria de se
esperar, foi “bombástica”. Humberto de Campos fez grandes inimizades, tanto nos
meios literários, quanto nos políticos e na imprensa. Mas o publico deliciou-se
com esses minicontos, na verdade autênticas de anedotas, conforme pontuou no
título da obra.
Pincei, a esmo, alguns
desses textos picarescos, para que o leitor tenha uma idéia do seu teor.
Ei-los:
“A VASSOURA E O
AJUNTADOR
Moreira de Azevedo -
Mosaico Brasileiro, pág. 141
Bernardo Pereira de
Vasconcelos, no início da moléstia grave que afinal o inutilizou para o serviço
do país, sofria de uma paralisia nas pernas, que o obrigava a arrastar os pés,
quando andava. Entrava ele, certa vez, no Senado, esfregando os sapatos no
soalho, quando o visconde de Caravelas, que era coxo e abaixava-se de uma banda
a cada passada, lhe observou, rindo:
- Que é isso? Você está
varrendo o Senado?
- É verdade - confessou
o grande tribuno. - É verdade.
E, aludindo ao defeito
do agressor:
- Eu varro o Senado e
você ajunta o cisco!”
“OS MELÕES DO
BERNARDINHO
Alfredo Pujol - Machado
de Assis, pág. 15
Achava-se Francisco
Otaviano uma tarde no escritório, quando lhe apareceu o seu velho camarada
Carlos Bernardino de Moura, redator da Pátria, de Niterói, e pediu-lhe algum
dinheiro para levar à família, que não tinha o necessário para as despesas do
dia.
- Olha, Bernardino,
vamos dividir irmãmente o que eu tenho no bolso, - propôs o poeta.
E tirando da algibeira
quarenta mil réis, passou vinte ao camarada.
Meia hora depois, ao
sair do escritório, encontrou Otaviano o Bernardino na rua do Ouvidor, à porta
de uma confeitaria, sobraçando dois vistosos melões
"casca-de-carvalho", que se não compravam por menos de dez mil réis
cada um. Deu-lhe caça, tomando-lhe a frente.
- Olha, Bernardino, -
disse, detendo-o.
E tomando-lhe um dos
melões:
- Vamos dividir isso
irmãmente!”
“SANGUE E FLORES
Tobias Monteiro -
"Pesquisas e Depoimentos", pág. 34
Votava-se no Senado a
lei do Ventre Livre, a 28 de setembro de 1878. Nas tribunas do Senado,
repletas, apareciam as figuras mais eminentes do mundo diplomático, entre essas
o ministro dos Estados Unidos. A discussão do projeto foi brilhante e vigorosa,
sob a presidência de Abaeté. E quando, pela votação, se verificou a vitória de
Rio Branco, o povo que enchia as galerias irrompeu em manifestações ao grande
estadista, lançando-lhe sobre a cabeça braçadas e braçadas de flores.
Terminada a sessão, O
ministro dos Estados Unidos desceu ao recinto para felicitar o presidente do
Conselho e os senadores que haviam votado o projeto. E colhendo, com as
próprias mãos, algumas flores, das que o povo atirara a Rio Branco, declarou:
- Vou mandar estas
flores ao meu país, para mostrar como aqui se fez deste modo, uma lei que lá
custou tanto sangue! (...)”
“(...) CAXIAS E A SUA
TROPA
Taunay - Homens e
Coisas do Império, pág. 112
O Duque de Caxias,
quando em campanha, fazia questão de sofrer as mesmas agruras e correr os
mesmos riscos que os seus soldados. Uma tarde, em Lomas Valentinas, estava ele,
completamente molhado, sob uma laranjeira, esperando o momento do ataque,
quando uma ordenança se aproximou, trazendo à mão, com cuidado, uma fumegante
xícara de café.
- Aqui está - disse -
que o senhor. dr. Bonifácio de Abreu mandou para Vossa Excelência, e ordenou-me
que não deixasse cair um pingo no chão.
O marechal fitou-o
pausadamente.
- Eu não quero, -
respondeu, afinal.
E para o soldado,
abrandando a voz:
- Beba-o você, camarada”.
“PROFECIA QUE FALHOU
Assis Cintra -
"Mentiras Históricas", pág. 95.
“Quando Deodoro da
Fonseca, destacado para Mato Grosso pelo governo imperial, regressou ao Rio,
estava no poder o gabinete Ouro Preto, formado a 7 de junho de 89.
Ferido na sua dignidade
de militar e de amigo do trono, o velho soldado não parecia surdo, dessa vez,
ao apelo dos seus camaradas, que o queriam pôr à frente de um movimento
republicano.
A trama transpirou, e
foi levada ao conhecimento de Ouro Preto, que sorriu.
- Movimento
republicano? - estranhou.
E com desprezo:
- Os netos dos nossos
netos, serão governados pelos netos de Sua Majestade (...)”.
“(...) A FRASE DE
BADARÓ
J.M. de Macedo -
"Ano Biográfico", vol. III, pág. 48.
Italiano, embora, de
nascimento, Libero Badaró sente-se, ao chegar ao Brasil, atraído pela grande
luta que então se travava pela nacionalização do Império nascente. Arrebatado
por uma das torrentes de paixões, funda, com outros, em S. Paulo, o Observador
Constitucional, que exerce, de pronto, enérgica influência sobre a opinião
pública.
Na noite de 30 de
novembro de 1830 sai Badaró da residência de um amigo quando, na esquina, é
assaltado por dois indivíduos embuçados, os quais o alvejam com tiros de
pistolas.
Ferido gravemente, é
levado para casa. Cercam-no amigos, discípulos, companheiros. Querem operá-lo,
mas ele opõe-se. Médico, sabe que o ferimento é de morte.
Aproxima-se a agonia.
Badaró ergue-se, então, em um dos cotovelos, e exclama, como iluminado:
- Morre um liberal, mas
não morre a liberdade!”
“(...) MERCÚRIO PARA
TRÊS
Coelho Neto - "A
Conquista", pág. 44.
Era no Rio antigo,
primeiros dias da República, últimos dias da Monarquia. Entrava Paula Ney no
teatro Santana, quando foi abordado por duas mundanas, antigas atrizes, que o
arrastaram para uma das mesas vazias afim de que lhes pagasse alguma coisa.
O boêmio não se fez
rogado. Sentou-se entre as duas raparigas, e, batendo, forte, com a bengala na
mesa de estanho, chamou:
- "Garçom"!...
"Garçon"!
E à aproximação do
empregado:
- Mercúrio, para três!”
A vida de Humberto de
Campos, todavia, “virou pelo avesso” de 1928 até 1934, quando de sua morte. É
verdade que não perdeu a criatividade. Seu sucesso continuou inabalável
inclusive por vinte anos após o falecimento, ostentando a condição, disparada,
de escritor brasileiro mais lido na ocasião. Todavia, ele perdeu,
progressivamente, a alegria de viver. Nos últimos anos de vida, ele, que sempre
se caracterizou pelo otimismo e bom-humor, desejava apenas morrer, para se
livrar do sofrimento. Humberto de Campos
iniciou janeiro de 1928 alegre e confiante em um futuro ainda mais brilhante do
que com seu presente, com sucesso maior do que tivera até então. Era escritor
consagrado, seu nome era a todo o momento citado como futuro governador do
Maranhão, tinha uma família amorosa e bem constituída, com um casamento feliz e
três filhos de que se orgulhava. Mas, há já algum tempo, vinha tendo sintomas
“estranhos”.
Resolveu marcar
consulta médica. E... descobriu (e tardiamente) que sofria de uma doença então
incurável e progressiva, que aos poucos lhe deformava várias partes do corpo: a
acromegalia. Tratarei, oportunamente, com mais vagar, dessa anomalia e dos
efeitos que ela teve, sobretudo, sobre o ânimo de Humberto de Campos. Por hoje,
reproduzo o que ele registrou em seu Diário a esse respeito. Em 6 de janeiro
escreveu, por exemplo: “Sensação de inchaço nas mãos (parece que uso luvas
de boxe); Dr. Afonso MacDowel, a quem consultei, chama isto de ‘edema dos
escritores’; paulatinamente edema dos pés, nariz, lábio inferior, língua
crescendo na boca. Causa? Amígdalas inflamadas, tratamento – amigdalectomia com
muita hemorragia. Explicar tudo isto com a teoria do Dr. MacDowel seria levar
muito longe o efeito da pena, por que me incham os pés se eu, ao contrário de
alguns colegas da Academia, não escrevo com eles”.
Dias depois, registrou: “Voltei
ao consultório, o médico ficou surpreso com meu aspecto, vá fazer urgente uma
radiografia, isto deve ser problema da hipófise, a glândula cerebral que
preside a circulação e o tratamento é muito sério e demorado; não percamos
tempo, senão, dentro de pouco prazo você estará inutilizado para o trabalho”.
Em 20 de janeiro anotou: “Febre alta; gripe? Consulto médico
homeopata, Dr. Raul Hargreaves; receitou-me gotas de 2 em 2 horas, dormi e
acordei sem febre; Edmundo Goncourt (escritor francês) dizia que a homeopatia é
o protestantismo da medicina. Para meus outros males, vou aderir ao
protestantismo. A alopatia mata e a homeopatia deixa morrer!”. E, em 24 de
janeiro, registrou: “Submeti-me a um exame dental com o homeopata, contei-lhe o
diagnóstico sobre o diagnóstico do alopata: meu problema é hipófise. ‘Não’, disse-me
ele, ‘o senhor tem é reumatismo articular. Devia haver um código penal para os
médicos!”. Pois é, essa indefinição no diagnóstico foi fatal para Humberto de
Campos. Mas...
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