Lembranças de Humberto
de Campos da sua infância
Pedro
J. Bondaczuk
Humberto de Campos Vera
nasceu em 25 de outubro de 1886 na cidade que hoje leva seu nome, mas que na
ocasião do seu nascimento chamava-se Miritiba. Localiza-se a cerca de 20
quilômetros do litoral, no Sudeste do Maranhão. Em linha reta, fica distante
100 quilômetros de São Luiz. Esse pequeno município interiorano, que em 1984,
quando do centenário da morte do escritor, tinha por volta de dez mil habitantes,
hoje tem uma população estimada de 27 mil pessoas. As principais atividades
econômicas do lugar são a agricultura e a extração do babaçu. Nas páginas 26 a
28 do seu livro “Memórias”, Tomo I, que abrange o período entre 1886 e 1900, o
ilustre maranhense lembra da morte do pai, homem de origem humilde, chamado
Joaquim Gomes de Farias Veras. No texto, Humberto de Campos faz uma descrição
marcada mais pela saudade do que pela objetividade.
O escritor revelou: “Quando meu pai morreu, eu tinha seis anos e
vinte e dois dias. Mas lembro-me, ainda, perfeitamente, dos seus modos e da sua
figura. Era um homem de estatura acima de mediana, ágil, airoso e elegante.
Claro, e corado, olhos azuis, cabeleira farta e ondulada, de ouro queimado,
quase vermelha; bigode da mesma cor; e umas suíças baixas que lhe chegavam até
o meio da face. Olhando neste momento o retrato que dele me resta, encontro,
entre a sua fisionomia e a de Dom Pedro I, curiosas semelhanças. Apenas, em meu
pai, os traços são mais finos, graciosos e corretos; o nariz bem feito, a testa
lisa e igual e o rosto mais longo, sem as bochechas do primeiro imperador. Um
belo tipo de homem, em suma, no porte e
nas linhas – ideia que me é confirmada pelas pessoas que o conheceram”.
O pai de Humberto de
Campos, pequeno comerciante de Miritiba, morreu jovem, muito novo, no pleno
vigor dos 35 anos. Mas deixemos que o próprio escritor relate as circunstâncias
que antecederam esse infausto acontecimento em sua vida:
“E
vejo-o no instante mais trágico de seu destino. Ele havia saído a passeio em um
cavalo árdego, que exigia espora de fidalgo e pulso de cavaleiro. De regresso,
com o animal coberto de espuma, vai estacar diante da porta num puxão repentino
das rédeas, quando minha irmã, que tinha apenas dois anos e vestia uma simples
camisinha de rendas, sai na carreira de casa e cai, na rua, sob as patas do
animal em marcha. Meu pai sofreia o cavalo e solta um grito. Olha para baixo, e
vê; a filha está no chão, de bruços, entre as patas do animal, que lhe pisam a roupa
ligeira. A aproximação de qualquer pessoa é impossível. O quadrúpede resfolega
impaciente, mordendo o freio. Um movimento qualquer, e, sentando-lhe uma das
patas na espinha frágil, pode matar a menina. Vem, então, a meu pai uma ideia
súbita e desesperada: crava de repente, e com violência, as esporas no ventre
do animal, que dá um arranco, saltando longe. A filha estava salva, mas ele
estava morto: ao apear-se, muito pálido, pediu um copo d’água. A datar, porém,
desse dia, não teve mais saúde. Ano e meio, ou dois anos depois, morria do
coração”.
Soberba narrativa,
cheia de tensão e de suspense, repleta de detalhes, incomuns numa criança da
idade que Humberto de Campos tinha
quando o fato aconteceu. É certo que, provavelmente, os adultos refrescaram-lhe
a memória. Todavia, não se pode subestimar as lembranças de uma criança,
notadamente a partir dos quatro anos. Eu, por exemplo, lembro de coisas há
muito esquecidas por outros parentes, e com tanta nitidez que é como se
houvessem ocorrido “ontem”, ou, quem sabe, algumas horas atrás. O notável não é
um menino lembrar de tudo isso, mas o adulto narrar com tamanha precisão e
tantos detalhes o que aconteceu décadas
atrás, apesar do trauma que esse quase desastre certamente lhe causou.
Outra descrição marcante
da sua infância, que Humberto de Campos faz, é a das páginas 134 a 139 do seu
livro “Memórias”. O fato descrito se passa na cidade piauiense de Parnaiba,
para onde a família se mudou após a morte do pai. Trata-se, mais
especificamente da sua passagem pela escola primária daquela localidade. O
futuro escritor estava, na ocasião, com quase oito anos de idade. E ele relata:
“Foi
em 1894, já nos últimos meses, que eu iniciei, em Parnaíba, a minha instrução
primária. Não era tarde, mas, também, não era cedo. Eu ia completar oito anos
no mês seguinte quando, em setembro, surgiu em mim o desejo de aprender. (...)”.
E prossegue parágrafos adiante: “(...) Em
janeiro de 1895 minha mãe nos matriculou, à minha irmã e a mim, em uma escola
pública. Eu estava no fim da carta de ABC, e lia, já, sem tropeços, na sua
última folha, que ‘o amor de Deus é o princípio da sabedoria’ (...)”. Como
não poderia deixar de ser, o futuro escritor apresenta a principal protagonista
de qualquer escola: claro, a professora, à qual se refere com enorme carinho: “(...) Dirigia-a (a escola) uma senhorita
que era quase uma menina, a qual, ainda hoje, parece mais moça do que eu. Não
lhe sei, ao certo, o prenome. Davam-lhe o tratamento de Sinhá e ninguém a
conhecia, senão, por Sinhá Raposo. Era miúda, gentil, graciosa, de cor
moreno-clara (...)”.
Humberto de Campos
tinha gratas recordações desse rústico e humilde “centro do saber”, onde deu os
primeiros passos no caminho do conhecimento. Escreveu, em determinado trecho,
do livro “Memórias”: “Tenho, ainda,
nítido, na memória, o aspecto da escola pública e humilde, primeira colméia em
que meu espírito fabricou, fora de casa, a sua primeira gota de mel. Sala
grande, e baixa, de chão de tijolo, com três janelas abrindo para a praça do
mercado. Em uma das extremidades, à esquerda, um estrado baixo, com a mesa da
professora. Diante dela, paralelamente, os bancos de madeira, estreitos e
altos, com a meninada de ambos os sexos, e de todas as cores de que se
constituía a população. Comprimidos, os pés sem tocar o solo, a cartilha ou as
tabuada nas mãos, a criançada se esgoelava, com toda a força dos pulmões, ao
mesmo tempo que balançava as pernas”.
Pouco depois de
completar onze anos de idade, em 1897, Humberto de Campos ficou órfão de vez.
Sua mãe, Ana de Campos Veras, morreu. O escritor e a irmã foram, então, para
São Luiz, onde acabaram sendo praticamente “adotados” pela família do
comerciante José Dias de Matos, que os queria como filhos e onde o futuro
escritor foi treinado para exercer a sua primeira profissão na vida: a de
caixeiro-viajante. Esse foi, conforme seu testemunho, a fase que considerou ser
a melhor de seus 48 anos de existência. É a esse período que me proponho a
descrever, porém não hoje, mas na sequência.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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