Saturday, April 04, 2015

Lembranças que convém preservar


Pedro J. Bondaczuk

As pessoas mudam com o tempo. Até aí, eu não disse nada de novo. Sei, inclusive, que se trata de afirmação até acaciana, de tão óbvia, mas nem por isso (ou, principalmente, por isso) deixa de ser verdadeira. Não me refiro, aqui, às mudanças fisionômicas, as ditadas pela evolução da idade. Se mostrarmos, por exemplo, a uma pessoa que nos conheça, digamos, há apenas alguns meses, uma foto antiga, de quando tínhamos sete, ou dez ou mesmo quinze anos, e se não lhe dissermos de quem se trata, raríssimas conseguirão nos identificar na imagem. Mudamos, e mudamos muito e, infelizmente, nem sempre as mudanças são para melhor, até no que diz respeito ao que pensamos e a como agimos.

Enquanto algumas pessoas evoluem, aprendem com a vida, extraem preciosas lições de fracassos e frustrações, outras tantas caminham para trás. Retrocedem inúmeros passos, corrompem-se, desencantam-se e ficam pelo caminho, lamentando a má sorte, quando na verdade suas desventuras nada têm a ver com azar, como alegam, mas são frutos do próprio comportamento tolo, ou desregrado (que no caso é a mesma coisa, já que o desregramento é megatolice). Como diz a letra de badalada composição de Cazuza, “o tempo não para”. Não para mesmo e nunca.

A vida, (como sabemos e sentimos na própria carne), é rápida demais. Chega um dia em que já não temos mais projetos ou ideais, ou por havermos concretizado todos os que tínhamos, ou por termos desistido, ou, o que é mais comum, por havermos fracassado por completo em sua realização. Restam-nos, então, apenas lembranças. Suaves recordações de pessoas que amamos e que não existem mais. Ou de circunstâncias que nos fizeram momentaneamente felizes. E, até mesmo, de deliciosos sonhos que então acalentávamos. Quem não tem nada de positivo e bom a recordar é o mais miserável dos miseráveis, embora tenha posses em profusão.

E o que dizer daqueles que fazem questão de se esquecer dos bons momentos que viveram e que cultivam, apenas, recordações amargas, de fracassos, perdas, dores e frustrações, das quais, aliás, nossa vida é bastante pródiga? Há gente assim e não é pouca. Geralmente são pessoas que nunca experimentaram as delícias de um amor verdadeiro, correspondidas ou não. “Acham” que amaram, mas estão equivocadas. Quem ama de fato não esquece um só episódio desse grande amor, que dá encanto e transcendência mesmo a uma vida aparentemente pacata e vazia. Caso amassem, jamais se esqueceriam de momentos tão marcantes, como o do primeiro encontro, da primeira impressão, das primeiras palavras trocadas, do primeiro contato e, o clímax, do primeiro beijo.  São coisas que nunca mais se apagam da memória dos que se amam ou amaram.

O poeta cubano, Fayad Namis, chega a comparar estas lembranças aos fatos mais marcantes da história humana. Conclui que, para os amantes, são mais importantes até do que a invenção da roda, a descoberta do fogo, a criação da escrita etc. Exagero? Quem já amou de verdade (ou quem ama) discorda. Eu discordo. Não há nada de exagerado nisso. É verdade que a memória costuma nos pregar peças incríveis. Fatos de que nos “lembramos” ter ocorrido de determinada maneira, ocorreram na verdade de outra, com inúmeros detalhes esquecidos e outros tantos acrescentados por nossa própria conta, pela imaginação e, portanto, diferentes dos realmente acontecidos. E não é só isso. Em determinados momentos em que ela não poderia nos falhar, falha. E nos causa, na melhor das hipóteses, alguns constrangimentos, logicamente desagradáveis que, na verdade, são bastante chatos. E nem é necessária a presença de alguma patologia para que a memória nos dê mancada. Lúcidos e sadios, passamos por essa frustração.

Todos têm tais lapsos em algum momento da vida. Trata-se, no meu entender, de “mistura de fichas”, de desorganização em nosso arquivo cerebral. Não acredito, contudo, que isso ocorra com lembranças de um grande amor. E se ocorrer, não vejo inconveniente algum no fato da memória “dourar a pílula”. Afinal, tais recordações nos serão sempre gratíssimas, em qualquer ocasião e, principalmente, na velhice, no ocaso da vida, fantasiadas pela imaginação ou não. O que não devemos é cultivar lembranças ruins. Se o fizermos, será a tolice das tolices. Essa insistência no negativo não permitirá que se percam nas brumas do esquecimento o que nos humilhou, causou dor (física ou emocional), nos diminuiu e nos fez sofrer.

O escritor italiano, Cesare Pavese, escreveu, no livro “Il mestiere di vivere”:"Chega uma época em que nos damos conta de que tudo o que fazemos se transformará em lembrança um dia. É a maturidade. Para alcançá-la, é preciso justamente já ter lembranças". Eu acrescentaria, contudo, que devemos “policiar” a memória. Esta, muitas vezes, é imprudente e/ou perversa. Guarda, ciosamente, o que seria prudente eliminar sem deixar vestígios, ou seja, recordações amargas, eivadas de frustração, ressentimentos e rancor. Todavia, descarta o que é sumamente precioso e deveria ser preservado, sobretudo lembranças do grande amor que iluminou e tornou transcendentes momentos ímpares da nossa vida. Por estas e outras é que fico, no final das contas, com a definição da escritora norte-americana Austin O’Malley, que não canso de citar e de reiterar  (para desgosto dos adeptos do politicamente correto): “A memória é uma velha louca que joga comida fora e guarda trapos coloridos”. Não permita que a sua aja com tamanha perversidade e loucura.


Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk 

No comments: