Crítico com o rigor do
cientista
Pedro
J. Bondaczuk
O que chama em especial
a atenção de quem toma contato, pela primeira vez, com a crítica literária de
Salim Miguel, é a objetividade das suas análises. Trata-se de procedimento que
difere radicalmente da forma de atuação da maioria dos críticos, que peca, sobretudo,
por teorizações e pelo dogmatismo. Já o autor de “O castelo de Frankenstein”
aponta virtudes e deficiências com total isenção, com o rigor de um cientista
que tenha sob o foco de seu microscópio alguma célula, ou bactéria ou vírus
raros ou desconhecidos, que se propõe a identificar e a catalogar, sem deixar
escapar nenhum detalhe. Esse rigor e essa objetividade ficam claros nas colunas
de crítica literária que assinou, por quase dez anos, no “Jornal do Brasil”; E,
principalmente, no livro “O castelo de Frankenstein”.
A limitação de espaço
impede que eu me aprofunde nessa obra e comprove o motivo do entusiasmo que ela
me despertou. Pincei, todavia, algumas anotações de Salim Miguel, que são
ínfima amostra da sua competência. Nelas ele justifica, por exemplo, méritos de
escritores catarinenses, muitos dos quais desconhecidos do grande público.
Destaca nuances estilísticas que passam batidas ao leitor comum, que atente
apenas ao enredo (a maioria), e mesmo ao crítico desatento ou imperito. Leva em
consideração, simultaneamente, tanto a forma quanto o conteúdo. Analisando, por exemplo, o livro “As
famílias”, de Adolfo Boos Jr., Salim Miguel sublinha seu detalhismo, que torna
as histórias que narra tão verossímeis. Mas lamenta: “Depois do livro, e da boa
receptividade, uma parada brusca e inesperada. Boos sumira do território das
letras. Nada mais publicou”. Todavia, pondera: “Certamente devia continuar
lendo muito, estudando, vivendo, aprofundando-se na teoria do fato literário e
na análise do bicho homem; mas, certamente, ainda continuava escrevendo (pois o
vírus se infiltrara nele – e é impossível uma pessoa livrar-se da maldição de
escrever). Mas a ninguém mostrava os seus originais. Muito menos aceitava
discutir a possibilidade de publicá-los. Negava, mesmo, tê-los”.
Boos, porém, voltou a
escrever, e a publicar. E Salim Miguel acentua esse “retorno”, que se deu com
três contos, publicados, respectivamente na antologia “Assim escrevem os
catarinenses” e nas revistas “Ficção” e “Status”. Diz, definindo em apenas dois
parágrafos o estilo desse escritor: “Em três contos, revelava não só o mesmo
observador atento e interessado, tendo o que dizer e sabendo como dizê-lo, mas
um crescente domínio da técnica narrativa. Na briga para domar a palavra ele
atinge o tom justo, a medida exata, indo até o mais profundo da psique humana e
investigando-a exaustivamente”.
Salim Miguel aduz, mais
adiante: “Embora seus contos (de Boos) sejam mais de clima, de situações
estanques, de localizações indefinidas, do que de ação e determinações
geográficas precisas, há sempre a permanência de alguns elementos conhecidos e
ambientes identificadores (tanto no interior da Bahia como nas praias de
Florianópolis, ou ainda na maneira das personagens se colocarem diante de tudo
que as cerca) em uma luta surda que se desenrola no interior dessa mesma
personagem”.
Apresentando outro
contista catarinense, o autor de “O castelo de Frankenstein” escreve: “Todo o
absurdo da condição humana está presente, com suas contradições, em ‘No banco geral’,
conto que abre um dos volumes recém-lançados por Emanuel Medeiros Vieira, e
onde se cristalizam algumas de suas principais características de ficcionista.
Ali se encontra o escritor preocupado com o destino do homem e perplexo diante
dos desencontros que marcam a nossa época e ali estão, igualmente, tratamento e
estilo que mostram a constante evolução de sua prosa, em busca de depuramento
formal e de sempre melhor transmissão de idéias. É uma prosa tensa, elétrica,
sincopada, com situações e planos se entrecruzando e fundindo”.
Sem inúteis e
cansativas circunvoluções semânticas, Salim Miguel vai direto na veia. Em
poucas palavras, e sem recorrer a dispensáveis e pedantes citações,
caracteriza, em duas penadas, o livro e seu autor. Em relação a Emanuel
Medeiros Vieira, o crítico meticuloso arremata: “Tempo e memória. Como uma
imagem que desponta e some, vai vêm, tempo e memória, que constituem a chave
mestra para se penetrar no mundo convulsionado de Emanuel Medeiros Vieira. Não
estamos, aqui, tratando da valoração desse conto como peça una e íntegra.
Talvez aí ela deixasse a desejar, pois a emoção incontida que dela ressuma faz
com que o autor por vezes se perca. Mas é, ainda assim, sem dúvida nenhuma, uma
peça básica para a melhor compreensão de uma obra em pleno processo de
andamento, com sua conclusão tão elucidativa: ‘a memória paralisa. Voam os
retratos, a casa cai definitivamente e soluçam todos os fantasmas desta minha
terra de Florianópolis, evocados pelo vento sul’. Fantasmas que não o abandonarão
como o vento sul nunca abandonou o poeta Cruz e Sousa”.
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