Admirável vitalidade
intelectual
Pedro
J. Bondaczuk
O “Diário Catarinense”,
tradicional jornal de Santa Catarina, publicou, em 30 de janeiro de 2014,
extensa reportagem, assinada pela tradutora e doutora em Literatura pela
Universidade de Montpellier, na França, Luciana Racier, alusiva aos 90 anos de
Salim Miguel, completados naquela data. Fez um resumo, aliás muito bem feito,
da carreira literária desse jornalista e escritor, classificado, na manchete da
matéria, como “um dos intelectuais mais completos da história do Estado e do
país”. E, creiam, não houve nenhum exagero nessa classificação. Uma das coisas
que mais me chamaram a atenção, e me surpreenderam, nessa reportagem que,
reitero, só pode ser qualificada de excelente, foi o anúncio, por parte do
homenageado, do lançamento de um novo livro, um romance policial intitulado
“Nós”, publicado pela Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, da
qual foi não apenas fundador, mas o responsável por sua consolidação.
E por que a surpresa?
Porque, convenhamos, não é nada comum tamanha lucidez e vitalidade intelectual
em um nonagenário. Salim Miguel, com mais de trinta livros publicados e bem
sucedidos (basta atentar para a quantidade de prêmios que conquistou), poderia
dar sua obra por concluída que ninguém iria estranhar. Muitos escritores, com
bibliografias muito menores e em idade bastante inferior à dele, agem assim.
Esse, todavia, não é o perfil desse “líbano-biguaense” (conforme Luciana
Rassier o qualifica em sua reportagem), que sempre se mostrou, antes e acima de
tudo, homem de ação. Se considerarmos 1951 o início da sua carreira literária,
época da publicação do seu primeiro livro, “Velhice e outros contos”, ela já
terá 63 anos. Contudo, sua trajetória no mundo das letras começou antes, muito
antes, em 1948, em Florianópolis, com a fundação da revista “Sul”, que
revolucionou os meios literários e culturais catarinenses e com a qual
colaborou por toda uma década.
Ou seja, como destaca
Luciana Rassier, no dossiê publicado pela Revista Litteris em 2011, Salim
Miguel atua, desde a década de 40, “escrevendo, lendo, criando projetos,
consolidando parcerias”. E isso até a idade de 90 anos, como comprova o
lançamento de seu novo livro, o romance policial “Nós”. Admirável, não é mesmo?
Admirável e invejável!!! Não foi apenas na Literatura que se destacou. Por
exemplo, entre as décadas de 1970 e 1980, elaborou fotorreportagens para a
revista Manchete, então uma das líderes de circulação nacional. Mostrou-se,
ainda, administrador competente e eficaz. Entre 1983 e 1991, por exemplo,
dirigiu a Editora da Universidade Federal de Santa Catarina. Sob seu comando,
ela se tornou uma das mais importantes do País no gênero.
Salim Miguel nasceu, em
30 de janeiro de 1924, em Kfarssouron, no Líbano. Veio para o Brasil, com a
família, quando tinha apenas três anos de idade. Desembarcaram no Rio de
Janeiro, onde moraram por praticamente um ano. O escritor, todavia,
considera-se catarinense por adoção. Isso porque sua família fixou-se na
cidadezinha de Biguaçu, região metropolitana de Florianópolis, de cerca de 65
mil habitantes, em 1929. Ali o escritor passou a infância e a adolescência e
descobriu a vocação para as letras. E que vocação! Destaque-se a experiência
amarga pela qual passou, após o golpe militar de 1964. Ele e a esposa, Eglê
Malheiros, foram presos, na oportunidade, e sem nenhuma denúncia formal ou
motivo minimamente justificável.
Luciana Rassier
destaca, a esse propósito, na sua reportagem no “Diário Catarinense”: “Salim
Miguel não era nem membro do Partido Comunista e nem oponente ao governo.
Aliás, na época do golpe militar, ele era chefe do escritório da Agência
Nacional de Santa Catarina e membro da equipe do Gabinete de Relações Públicas
do Governo Celso Ramos. Além de não impedirem sua prisão, esses vínculos
acarretaram situações insólitas, já que durante sua prisão o escritor e
jornalista encontrou conhecidos e colegas que, após o golpe, tinham sido
encarregados dos interrogatórios” Todavia, as pessoas inteligentes e dinâmicas
sabem como fazer de limões azedos deliciosas limonadas. E Salim soube. Durante
o período de encarceramento, anotou tudo o que viu e ouviu no cárcere. E, anos
mais tarde, soube aproveitar como ninguém esses apontamentos.
Luciana Rassier
escreveu a respeito: “Salim Miguel esperou vinte e oito anos para retomar as
anotações do diário que escreveu durante os 48 dias em que ficou preso. A
partir delas, ficcionalizou sua experiência em um belo e premiado romance,
‘Primeiro de Abril, Narrativas da Cadeia’, cujos capítulos, que podem ser lidos
independentemente, diferem bastante. Os que descrevem os interrogatórios ou a
tortura psicológica recriam a tensão e a angústia dessas situações, enquanto
que outros capítulos são escritos com humor e ironia”.
E a tradutora
prossegue: “Publicado em 1994, trinta anos após os eventos que conta, o livro
não privilegia apenas as alusões a fatos históricos _ ao contrário de tantos
outros textos relativos à ditadura militar no Brasil. O mais marcante é o
esforço da memória para reconstituir a atmosfera daqueles dias difíceis. As
anotações no diário são um modo de lutar contra a coisificação dos indivíduos,
na medida em que essas referem-se em sua maioria às pessoas que ali estão.
Salim Miguel nomeia os prisioneiros, os faz existir, lhes dá a palavra. Essas
vozes, até então silenciosas, são ouvidas e dão suas versões dos fatos. Assim,
esse texto constitui uma versão complementar, uma alternativa à versão
veiculada pelos textos oficiais. Versão que também é alternativa por estar à
margem das metrópoles e dos centros de poder do Brasil”.
Estas são apenas
algumas (poucas) referências à vida desse personagem que me fascina e
entusiasma. Isso, somado à qualidade do seu livro “O castelo de Frankenstein”,
que me chegou, praticamente por acaso, em 1986, ás mãos levaram-me a tomá-lo
como paradigma de amor e dedicação às duas atividades que se constituem em
minhas incorruptíveis paixões: o jornalismo e a Literatura. E o que me fascina,
particularmente, em Salim Miguel é sua longevidade e vitalidade intelectual que
o mantêm na ativa, mesmo aos 90 e bem vividos anos de idade.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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