Considerações
em torno da amizade
Pedro J. Bondaczuk
A amizade é um sentimento que
sempre me intrigou. Venho, há anos, tentando racionalizá-la, na condição de estudioso do comportamento, buscar suas
raízes, pesquisar as causas que a materializam e a concretizam e quanto mais me
aprofundo, mais atônito fico. Inúmeras pessoas são céticas a esse propósito.
Não acreditam que dois indivíduos, diferentes em tudo (em gostos, idéias,
visões de vida etc.etc.etc.) possam ser amigos, de maneira desinteressada, sem
que um pense em levar algum tipo de vantagem sobre o outro, ou que ambos tenham
essa intenção. Tenho pena de quem pensa assim. Esses dificilmente manterão, algum
dia, amizade com alguém, seja lá quem for, dada sua patológica desconfiança.
Não têm noção do que perdem. Há muita gente que age e que pensa dessa maneira.
Que acha que a amizade só surge da necessidade de quem as ajude em alguma coisa
ou lhes dê alguma espécie de lucro. Encaram todos como potenciais concorrentes,
como possíveis adversários, quando não como inimigos. E tornam-se infelizes,
amargos e... perdedores.
A história registra amizades
notáveis, sólidas, a salvo de abalos e de crises, indestrutíveis, que superaram
testes e conflitos que poderiam arruiná-las, por terem arruinado muitas outras
semelhantes, e sobreviveram. E não somente isso: cresceram, se fortaleceram e
se consolidaram. A Bíblia nos relata um desses casos: o de Davi e Jonatas, relatado,
em detalhes, no livro de I Samuel. Como não sou teólogo, recorro a um
especialista na matéria, no caso o Reverendo Welerson Alves Duarte (como
poderia ser outro, não importa de que denominação cristã) para esclarecer esse
episódio. O referido clérigo classificou essa profunda ligação afetiva entre
pessoas com biografias e interesses tão heterogêneos e díspares (potencialmente
conflitantes), como uma “aliança de amor” Por ela, uma das partes abriu mão até
mesmo de um reino, no caso o de Israel, em favor do amigo, sem se aborrecer e
nem vacilar em momento algum.
Explico para os que não são
familiarizados com textos bíblicos. Jonatas era filho de Saul, o primeiro rei
israelita. Este ascendeu ao trono quando este povo, até então nômade, mal
começava a se organizar politicamente como Estado, ou mais especificamente,
como nação. Jonatas era, portanto, herdeiro natural do trono, como o
primogênito do monarca. Ocorre que Davi, que não fazia parte da família real,
era tido e havido pelos juízes e profetas como o escolhido por Deus para
conduzir os destinos de Israel. Qual seria a reação natural e humana do
sucessor do trono, mesmo ligado por sentimento de profunda amizade pelo “rival”
(que é o que Davi era), ao tomar ciência dessa circunstância? Seria, sem dúvida,
o de defesa dos próprios interesses. Não é o que você faria, caro leitor? É o
que qualquer pessoa faria.
Essa amizade seria cercada de
desconfiança. A parte aparentemente prejudicada acreditaria que o amigo, de
alguma forma, simularia tal sentimento exclusivamente por interesse, agindo de
forma a apunhalá-lo pelas costas. Qualquer um que não confiasse cegamente no
amigo agiria assim. Saul agiu, vendo nessa amizade (em cuja sinceridade não
conseguia acreditar) como mero ato de oportunismo para usurpar a coroa que
deveria caber ao filho. Tanto que chegou, até, a tentar matar Davi. Mas
Jonatas... não pensou assim. Confiou, até o fim, no amigo, sem questionar suas
intenções e nem desconfiar delas. Pagou, por isso, o preço da perda do trono e
nem assim se indispôs contra Davi. .
Concordo com a conclusão do
Reverendo Walerson, após analisar esse episódio bíblico: “Amigo é aquele com
quem podemos ser nós mesmos. Ser nós mesmos implica uma apresentação sem
reservas e espontânea de si mesmo, sem o autocontrole exigido pelas regras da
polidez. Li certa vez que amigo é aquele com quem se pode pensar alto”. E não
é?!! Davi e Jonatas pensaram alto. E não se espantaram com o pensamento um do
outro. Tenho minhas dúvidas se nos dias atuais uma amizade, por mais sólida e sincera
que seja, resistiria às circunstâncias que a descrita na Bíblia resistiu. Não
garanto que não, mas não tenho tanta fé assim em sua resistência. Há muitas
formas de identificarmos amigos potenciais, antes mesmo que venhamos a
conhecê-los em profundidade. Uma, por exemplo, é certa identidade de
sentimentos, idéias e comportamentos, que nos conduzem a uma instintiva empatia
em relação a determinada pessoa.
O escritor Carol S. Lewis sugere
maneira mais simples e direta desse reconhecimento. O autor de “Alice no país
das maravilhas” afirma: “A amizade nasce no momento em que uma pessoa diz para
outra: ‘O quê? Você também? Pensei que eu fosse o único!’”. Claro que há outras
formas de identificação, até porque, nem sempre é necessário (ou pelo menos não
é indispensável) que uma pessoa pense e sinta exatamente como nós pensamos e
sentimos para privar da nossa amizade. Esta, no entanto, é a forma mais comum,
e também a mais segura, para o reconhecimento de um amigo em potencial. E
também, é mister ressaltar, para reconhecer algum inimigo que seja, se não um
perigo para nós, pelo menos grande incômodo.
Vocês já notaram como há pessoas
que nos despertam instintiva antipatia, sem que tenhamos convivido com elas e
sequer trocado palavras, apenas pela observação delas à distância? Não afirmo
que sejam inimigos potenciais (às vezes nem são), mas raramente conseguimos
estabelecer relação de amizade com elas. Por que isso acontece? Nunca consegui
entender. Aspiramos ser reconhecidos por nossos méritos, mesmo que estes sejam
ínfimos e, se possível, não apenas valorizados, mas até estimados por eles.
Nada no mundo pode ser mais gratificante do que o fato de sermos considerados
“preciosos” (se possível indispensáveis) para alguém. Esta é, no meu entender,
a verdadeira grandeza pela qual vale a pena lutar.
Para tanto, porém, é necessário
que conservemos a inocência das crianças. Ser inocente, ressalte-se, não é ser
ingênuo como muitos podem pensar, mas jamais agir com malícia e com segundas
intenções em relação a ninguém. Em vez de eventual deficiência, ela é, na
verdade, a mais clara manifestação de sabedoria. Eduardo Sá escreveu: “Ser
inocente é ter um olhar longo e aberto... É estar, ombro a ombro, com todo o
universo e ser grande, ter brilho e voz (e vida) só porque se é precioso para
alguém... Talvez por isso, só os sábios sejam inocentes”. Afinal, são seres
preciosos para o mundo por aquilo que são, sem máscaras, enganos, subterfúgios
ou exageros, e não pelo que eventualmente têm. Por isso, consideramo-los
“amigos”, mesmo que nunca os tenhamos conhecido pessoalmente e que tenham, até
mesmo, morrido décadas, séculos ou milênios antes do nosso nascimento. É
estranho, estranhíssimo, esse sentimento da amizade no qual, no entanto, creio
sem reservas e ao qual estou disposto a me entregar sem reservas, de coração,
corpo e alma.
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