Um
basta a governos autocráticos
Pedro J. Bondaczuk
Os
acontecimentos dramáticos que se verificaram (e que ainda se verificam) na
Ucrânia, onde um movimento separatista ameaça fragmentar irremediavelmente o
país; no Iraque, com líderes religiosos retrógrados
criando, na prática, um califado autônomo desagregando ainda mais um país que
perdeu sua identidade após longa intervenção norte-americana e na Síria,
convulsionada há já bom tempo, fazendo dela terra de ninguém e a movimentação
política que ocorreu em alguns países-chaves da Europa Ocidental demonstram,
melhor do que nunca, que o tempo dos governos autocráticos, que não dão ouvidos
às bases e não admitem oposição, está chegando definitivamente ao fim. Claro
que poderíamos citar outros tantos exemplos, dezenas deles, mas estes
mencionados são suficientes.
O povo, pelo menos
nos países com maior tradição democrática, está redescobrindo sua força, à
revelia dos políticos. E onde não há um aspecto tradicional, as massas se
empenham por criar tal situação. Tempos atrás, na hoje desagregada
Checoslováquia, por exemplo, a população foi às ruas, ordeira e pacificamente,
e derrubou um regime apodrecido em suas bases, sem tiros e nem barricadas, num
movimento que ficou conhecido como "Revolução de Veludo". Quando há
lideranças lúcidas e inteligentes, prescinde-se de violência para mudar
situações tenebrosas. Na Hungria, ocorreu algo semelhante, posto que num tempo
mais longo. Na Polônia, foram os trabalhadores que "viraram a mesa",
transformando o Solidariedade de sindicato proscrito, em magnífico movimento
político.
O
leitor poderia afirmar que isso ocorreu nos países mencionados porque não houve
reação por parte dos regimes derrubados. Houve, mas foi impotente para sufocar
os anseios das respectivas populações por liberdade de ação e de opinião. Na
Romênia, por exemplo, ela não somente existiu como foi dramática e perversa.
Ainda assim, o povo levou de roldão o truculento ditador Nicolae Ceausescu e
sua sanguinária polícia secreta, a "Securitate", num levante
sangrento, em que muitas pessoas morreram. Todos estes dramáticos
acontecimentos nos parecem tão recentes, como se tivessem ocorrido “ontem”, no
entanto... já são história. Isso sem falar no esfacelamento da antiga
Iugoslávia, que resultou em dantesco “banho de sangue”, ao contrário do que
ocorreu na extinta Checoslováquia, por
exemplo.
Na
então Alemanha Oriental, as pessoas escolheram o caminho do êxodo para o
Ocidente. Passaram um recado claro para os políticos de linha-dura de que, ou
eles cediam o poder para representantes legítimos das aspirações populares, ou
não teriam a quem governar. E se deram bem. Precipitaram, com seu corajoso ato de rebeldia, e sobretudo
pacífico, a reunificação desta hoje (novamente) potência, não só europeia, mas
mundial, que havia sido dividida em conseqüência da Segunda Guerra Mundial.
No
Terceiro Mundo, esse tipo de conscientização ainda é muito incipiente. Mas já
se impõe uma reação efetiva contra os autocratas. A América Latina, por
exemplo, vive momento raríssimo em sua história, que por sinal é muito curta.
Atravessa um já relativamente prolongado período em que, se não me engano, só
um presidente não foi escolhido pelo povo nas urnas: o de Cuba. É verdade que
vícios estruturais, notadamente a corrupção, a proliferação de partidos em que
o que menos conta são programas coerentes, consistentes e factíveis, e em
muitos desses países, ostensivas e escandalosas fraudes eleitorais que
distorcem e falsificam a real vontade do povo (entre tantas e tantas e tantas
mazelas) persistem, teimosamente; Mas as coisas, convenhamos, já foram piores,
muito piores. Pelo menos a região está livre (e espera-se que continue assim)
de quarteladas, de golpes de Estado, de “revoluções salvadoras” que nada salvam
e só suprimem a liberdade da população.
Se
a tendência persistir, e não há razões plausíveis para que não persista (só se
espera que o processo evolua, se aperfeiçoe e se consolide), esse relativamente
longo período democrático (ou algo parecido com isso), iniciado na última década
do século XX, será caracterizado pela implementação efetiva (mesmo que lenta e
gradativa) da democracia na América Latina. Mas é preciso que esta deixe de
ser, apenas, conceito vago e retórico, na maior parte do Planeta, senão nele
inteiro. Todo tirano, por mais cruel e perverso que seja. se auto-rotula de
“democrata”. Jura que os crimes e desmandos que comete são atos legítimos,
visando exclusivamente a “defesa do Estado”. Muitos, mesmo tidos e havidos como
defensores da democracia, confundem a natureza e o alcance dessa entidade
abstrata, desse mero conceito em nome do qual cometem tantos desmandos.
São
constantes as denúncias de graves e ostensivos abusos cometidos contra o mais
sagrado dos direitos do homem, o da vida. Li, ao acaso, um relatório da Anistia
Internacional, datado de 1985. Nele constam relatos de violações de direitos
humanos em 40 países da comunidade mundial. Entre eles estão incluídos todos os
tipos de regimes e de ideologias, que de uma maneira ou de outra, cometeram
abusos intoleráveis contra a integridade física de cidadãos, a quem lhes
competia proteger. Afinal, o Estado existe em função do indivíduo e não o
inverso. É uma entidade abstrata, composta por pessoas tais como nós, com as
mesmas necessidades e fraquezas que temos. O cidadão, teoricamente, é seu
grande beneficiário (ou deveria ser). A sociedade, que delegou poder aos que
exorbitam dessa forma tão degradante de suas funções, tem o dever de cobrar
deles. Poderia citar outros tantos relatórios similares, inclusive deste ano, e
todos apresentam resultados parecidos, quando não piores. Nada mudou no que diz
respeito à proteção dos direitos dos cidadãos.
Ainda
nos tempos antigos, Cícero, em "De Legibus", já concluía, com rara
lucidez: "Se da reta razão resulta a lei e desta o Direito, este deve ser
igual para todos, assim como comum a todos é a fonte originária da razão
natural". Segundo Jellinek, as leis são ditadas pelo interesse geral. E à
maioria não interessam torturas, degradações morais e execuções arbitrárias.
Ainda mais quando esses crimes são cometidos pelos que receberam delegação
popular exatamente para coibi-los e erradicá-los.
O
conceito de democracia, portanto, tem que evoluir para seu real significado. E
este pode ser resumido de forma sumamente simples: “TODOS temos direitos
iguais. E meu direito termina exatamente onde começa o seu”. Quando (ou se)
isso estiver claro na mente da totalidade dos cidadãos (e isso só será possível
através da Educação, em sentido lato), sem necessidade de nada ou ninguém para fiscalizar
tal prática e punir eventuais faltosos; quando estes não existirem por causa da
citada conscientização geral (e não por temor de sanções), poderemos dizer que
então haverá democracia real e não mero arremedo dela.
Será
que chegaremos um dia, em algum lugar, a essa condição? Tomara que sim! Entendo
que esse é o único caminho lógico e justo para a extinção de autocratas e
autocracias, de tiranos e tiranias, de ditadores e ditaduras. No longo prazo –
com o vertiginoso crescimento populacional e com a fartura e excelência dos
meios de comunicação – só restará à humanidade esta, e esta única opção. Ou
teremos democracia autêntica e generalizada ou... será o caos.
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