Sunday, November 30, 2014

Eufemismos e estereótipos

Pedro J. Bondaczuk


Os homens que ocupam o poder, em qualquer de suas instâncias, seja em que parte do mundo (ou em que época) for, via de regra, salvo raras exceções, lançam mão, em seus contatos com as pessoas sobre as quais exercem domínio – caracterizadas genericamente como "povo" –, de eufemismos e de estereótipos para "explicar", ou no mais das vezes "justificar", ações (ou omissões). Acabam, por conseqüência, não explicando e nem justificando nada. Certamente não é essa sua verdadeira intenção.

Alguns jargões utilizados já se tornaram até motivos de anedota entre os politicamente esclarecidos (minoria em termos mundiais e também no Brasil), de tão cínicos que são. Tal manifestação de esperteza seria, de fato, risível, não fosse lamentável, por se tratar de forma de burla, de fuga à responsabilidade da prestação de contas àqueles que esses poderosos (teoricamente) representam.

Aurélio Buarque de Holanda Ferreira define assim o termo "eufemismo", em seu popular dicionário da língua portuguesa: "sm. Ato de suavizar a expressão duma idéia substituindo a palavra própria por outra mais polida". Já estereótipo é uma expressão emprestada das artes gráficas e usada como metáfora para clichê, para chavão, para a maneira geralmente distorcida e inalterável de caracterizar pessoas, grupos, objetos, conceitos etc.

Estereotipia, de acordo com o dicionarista, é o "processo pelo qual se duplica uma composição tipográfica, transformando-a em fôrma compacta, mediante moldagem de uma matriz sobre a qual se vaza metal-tipo".  O jornalista Jânio de Freitas, em artigo publicado na "Folha de S. Paulo" no dia 23 de novembro de 1998, intitulado "País Submergente", alinhou alguns eufemismos muito comuns, utilizados, sem nenhuma parcimônia, especialmente por economistas e sociólogos.

O articulista citou, por exemplo, que a caracterização (até pouco tempo atrás muito em voga) para país pobre, atrasado e/ou mal administrado, ou seja, "subdesenvolvido", foi substituída  pelo termo "emergente". Mas o Brasil ainda não "emergiu" do buraco onde está metido há quase cinco séculos. Destaque-se que está nessa situação não por ausência de recursos naturais e de material humano, mas por falta de verdadeira consciência social, que não privilegie pessoas ou grupos, mas proporcione oportunidades relativamente iguais para todos.

O conceito de cidadania no Brasil está muito longe do real significado. Não passa de retórica, face à realidade cruel com a qual convivemos da infância à velhice e que por isso já nos acostumamos. Se "país emergente" é eufemismo, o mito do "brasileiro cordial" é estereótipo. Nenhum dos dois condiz com a realidade dos fatos.

O sociólogo alemão Ralf Dahrendorf, em discurso que proferiu em 20 de outubro de 1990 no Saint Anthony's  College, em Oxford, Inglaterra, na cerimônia de entrega do Prêmio Toynbee (texto inserido em seu livro "Após 1989 – Moral, Revolução e Sociedade Civil"), destacou: "...A cidadania visa a dar a pessoas que são diferentes em idade e sexo, em suas crenças e na cor de sua pele, em seus interesses sociais e em suas preferências políticas, os mesmos direitos básicos. Esses direitos incluem o que veio a ser denominado de direitos humanos, como a integridade da pessoa e a liberdade de expressão; eles incluem também os direitos civis de participação na comunidade política, no mercado de trabalho, na sociedade, incluindo também o direito de seguir as próprias preferências culturais".

Por essa conceituação, se pode dizer, mesmo "forçando a barra", que a maioria dos brasileiros exerce minimamente a cidadania? Claro que não! E as esperanças de mudança estão se exaurindo. O "passaporte" para a liberdade – a educação – ainda é muito precário no Brasil (uma parcela considerável da população não tem acesso a ele) e requer ajustes. Verdade seja dita que, nesse aspecto, houve grande evolução nos dois mandatos de Luís Inácio Lula da Silva e no de Dilma Roussef. Mas há ainda longo, longuíssimo caminho, de se perder de vista, a percorrer.

A Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) classificou o ensino brasileiro como um dos mais deficientes do mundo. E ele já foi pior, conforme frisei! O progresso, no entanto, foi relativamente pequeno, diria irrisório, face nossas necessidades e o tempo que já foi perdido.

A Unesco constatou, tempos atrás (mais especificamente, em 1998), que o analfabetismo no Brasil atingia 19,6% das pessoas acima dos sete anos; que 20 milhões de indivíduos com mais de 14 anos eram analfabetos; que 50 milhões de adultos não haviam passado da 1ª série do 1º grau, sendo classificados como analfabetos funcionais; que dez milhões de crianças entre três e seis anos – num universo de 14 milhões – não freqüentavam a pré-escola e, de cada cem crianças matriculadas no 1º grau, só 33 concluíam a oitava série. Essas cifras mudaram, nos últimos dezesseis anos, mas não como seria de se esperar. As melhorias foram anuladas pelo crescimento da população.  Agora pergunto: esse contingente de indivíduos despreparados, ou mal-preparados, tem a mínima condição de competir no mercado de trabalho e de conquistar a ascensão social? Ora, ora, ora.  

Mas o subdesenvolvimento brasileiro, ao contrário da maioria dos outros povos da África, Ásia e América Latina, não decorre de falta de riquezas naturais ou das geradas com o trabalho da população. O País ostenta a sétima (já foi a sexta) maior economia do mundo, o que, convenhamos, não é pouco. No papel, a renda per capita anual (crescente) é superior a US$ 6 mil, nada desprezível se, na realidade, se aproximasse de fato dessa quantia. Estes, no entanto, são números mentirosos. Oitenta por cento dos mais de 200 milhões de brasileiros – que ou não têm nenhum rendimento, ou sobrevivem (ou vegetam) com entre meio e um salário mínimo mensal –, só podem rir desse dado estatístico, longe de condizer com sua verdadeira condição de quase indigência. E olhem que o País evoluiu muito nesse aspecto. Imaginem como era, digamos, há duas décadas.

O pecado do Brasil reside não no tamanho do bolo, mas na sua repartição, prometida por sucessivos governos, quer ditatoriais, quer os livremente eleitos pelo voto, que seria feita com justiça, mas cuja promessa jamais foi cumprida. Nesse aspecto, o da distribuição de renda, estatísticas precisas, de entidades internacionais confiáveis, demonstram, de sobejo, que ainda somos uma das sociedades nacionais mais injustas do Planeta, a despeito de vários programas sociais, que reduziram bastante essa desigualdade. E o fosso que divide ricos de miseráveis, em vez de se estreitar, mantém-se praticamente constante...

O Brasil, portanto, não “emergiu”. Talvez esteja em processo de emersão. Tomara que sim! Outro eufemismo muito difundido é o de caracterizar o "retrocesso econômico" ocorrido há alguns anos como "crescimento negativo", evidente paradoxo, gritante contradição até semântica. "Favela" mudou de nome e é freqüentemente denominada pela tecnoburocracia de plantão de "assentamento urbano de baixa renda", como se a elegância da expressão apagasse, ou pelo menos atenuasse, a miserabilidade dessa forma subumana de "morar" (ou de se "esconder").

Em política, "infidelidade" para com partidos, aliados e principalmente com eleitores; "oportunismo" e "egoísmo" transformaram-se em "fisiologismo". O miserável e excluído, vítima do "apartheid" social que atinge a dois terços dos mais de sete bilhões de habitantes do Planeta, é chamado de "carente" (e põe carência nisso!). "Mão de obra ociosa" é o conjunto dos "desempregados".

O diplomata Josué de Castro, no livro "Geografia da Fome", advertiu que "dois terços da humanidade não comem e um terço não dorme com medo da revolta daqueles que não comem", que é fatal, mera questão de tempo e do grau de desespero desses famintos. A todo o instante, nos discursos e declarações de políticos, ou nos artigos e ensaios de economistas, cientistas políticos e sociólogos, topamos com desnecessários e cínicos eufemismos e estereótipos. São tantos que se torna redundante, e portanto supérfluo, relacionar e repetir sequer os mais comuns.

Um deles, além do que diz respeito à suposta "cordialidade" do brasileiro (desmentida pelos crescentes e assustadores índices de violência e criminalidade), é o do "país do futuro" (infelizmente "deitado eternamente em berço esplêndido"). Outro desses estereótipos é o da "alegria" espontânea do povo. Outro, ainda, é a afirmação de que o Brasil "fatalmente se tornará superpotência" um dia. Neste último caso, até pode ser, já que dispõe de potencial para isso. Mas quando?

Para acontecer, será necessário vencer desafios imensos, nos campos da educação, da saúde pública, da habitação, do bem-estar social e da distribuição de renda, entre outros. Não serão eufemismos e estereótipos que irão mudar a situação do brasileiro. O saudoso presidente eleito (e nunca empossado) Tancredo Neves destacou, em discurso proferido em 1985, que "enquanto houver nesse país um só homem sem trabalho, sem pão, sem teto e sem letras, toda a prosperidade será falsa". Quanto tempo ainda vai levar para que haja uma consciência consensual sobre essa cristalina realidade? Um ano? Cinco anos? Dez? Cinqüenta? Cem? Nunca?



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