Passado e futuro se encontram
Pedro J. Bondaczuk
A
União Soviética ganhou sua liberdade, nesta semana, quando seu povo saiu
corajosamente às ruas, liderado pelo presidente russo, Bóris Yeltsin, para
dizer um "não" expressivo e definitivo ao totalitarismo, frustrando o
golpe da linha dura comunista para derrubar Mikhail Gorbachev.
Foi
um desfile de heroísmos e covardias, de lealdades e traições, de grandezas e de
misérias que ascenderam às manchetes dos órgãos de comunicação mundiais. Heróis
foram os cidadãos que enfrentaram de peito aberto os tanques da ditadura para
assegurar a cidadania recém-conquistada, como fruto da perestroika e da
glasnost. Covardes foram os membros do governo central que fizeram da omissão o
seu refúgio.
Gorbachev
pôde contar com a lealdade, por mais paradoxal que pareça, de seus adversários,
aliados de ontem, que passaram a discordar de suas hesitações em acelerar as
reformas, como foram os casos de Yeltsin, do ex-chanceler Eduard Shevardnadze e
dos prefeitos de Moscou, Gavril Popov e de Leningrado, Anatoly Sobchak, entre
outros.
Traidores
foram os que não somente partilhavam o poder com o presidente que tentaram
depor, mas gozavam de sua confiança e principalmente de sua amizade, com
destaque para o ex-vice-presidente Gennady Yanayev, para o ex-ministro de
Defesa, marechal Dmitri Yazov e para o ex-presidente do Soviete Supremo
Nacional, Anatoly Luckyanov.
Finalmente,
um monumento de grandeza foi a resistência heróica dos russos, que arriscaram o
bem mais precioso que possuíam, em alguns casos o único que tinham, suas
próprias vidas, para defender interesses da comunidade e não somente os
próprios e a miséria se caracterizou pela venalidade, pela subserviência, pelo
pânico de determinados indivíduos que não têm outra razão para viver senão
servir apenas os sentidos, abrindo mão do livre arbítrio, agindo como animais
sem raciocínio.
Nesta
semana, um mito soviético começou a marchar para o passado, para a história,
para a consagração devida aos libertadores de povos. Antes, todavia, como todos
os realizadores, todos os que produzem obras que permanecem e que vencem a
própria efemeridade de seus autores, passará por decepções, por ingratidões,
até por um temporário esquecimento. Porém a posteridade saberá fazer justiça a
Mikhail Gorbachev, por haver ensinado, passo a passo, pacientemente, com
cautela mas com coragem, os soviéticos a sentirem o gosto da democracia.
Se
um mito inicia sua caminhada rumo à história, outro projeta-se para o futuro,
tendo diante de si o desafio de recolher os estilhaços de uma superpotência
que, embora enviando sondas espaciais a outros planetas, não era capaz de
fabricar uma geladeira decente; apesar de ter as mais sofisticadas máquinas de
destruição em massa, não produzia sapatos suficientes para todos; a despeito de
liderar metade da humanidade com pulso firme, era incompetente para dar bem
estar e tranqüilidade a seu próprio povo.
A
impressão que se tem é a de que Gorbachev começará a sair de cena aos poucos,
discretamente, certo de que seu papel de pioneiro, de desbravador, de
libertador de povos foi cumprido. Em seu lugar ficará um seu pupilo, que ele
buscou em Sverdlovsk, na Sibéria, e que tem pressa em completar a tarefa que o
mesmo iniciou: Bóris Yeltsin.
Enquanto
o mentor da perestroika sofria os naturais desgastes do poder numa sociedade em
crise, à beira do caos, seu ex-aliado, depois rival e agora resgatador,
capitalizava o descontentamento existente. Ninguém em sã consciência poderá
jamais negar o heroísmo, o desprendimento, a firmeza do presidente russo.
Mas
o homem que rompeu o monolitismo comunista, que libertou o Leste europeu da
ditadura, que sepultou a guerra fria no cemitério da história, que foi o
catalisador de uma nova era, repleta de desafios, mas pródiga de esperança,
deve ser sempre lembrado. Gorbachev é o início, Yeltsin o objetivo da longa e
penosa caminhada dos povos soviéticos.
(Artigo
publicado na página 24, Internacional, do Correio Popular, em 25 de agosto de
1991).
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
No comments:
Post a Comment