Monday, November 10, 2014

Passado e futuro se encontram


Pedro J. Bondaczuk


A União Soviética ganhou sua liberdade, nesta semana, quando seu povo saiu corajosamente às ruas, liderado pelo presidente russo, Bóris Yeltsin, para dizer um "não" expressivo e definitivo ao totalitarismo, frustrando o golpe da linha dura comunista para derrubar Mikhail Gorbachev.

Foi um desfile de heroísmos e covardias, de lealdades e traições, de grandezas e de misérias que ascenderam às manchetes dos órgãos de comunicação mundiais. Heróis foram os cidadãos que enfrentaram de peito aberto os tanques da ditadura para assegurar a cidadania recém-conquistada, como fruto da perestroika e da glasnost. Covardes foram os membros do governo central que fizeram da omissão o seu refúgio.

Gorbachev pôde contar com a lealdade, por mais paradoxal que pareça, de seus adversários, aliados de ontem, que passaram a discordar de suas hesitações em acelerar as reformas, como foram os casos de Yeltsin, do ex-chanceler Eduard Shevardnadze e dos prefeitos de Moscou, Gavril Popov e de Leningrado, Anatoly Sobchak, entre outros.

Traidores foram os que não somente partilhavam o poder com o presidente que tentaram depor, mas gozavam de sua confiança e principalmente de sua amizade, com destaque para o ex-vice-presidente Gennady Yanayev, para o ex-ministro de Defesa, marechal Dmitri Yazov e para o ex-presidente do Soviete Supremo Nacional, Anatoly Luckyanov.

Finalmente, um monumento de grandeza foi a resistência heróica dos russos, que arriscaram o bem mais precioso que possuíam, em alguns casos o único que tinham, suas próprias vidas, para defender interesses da comunidade e não somente os próprios e a miséria se caracterizou pela venalidade, pela subserviência, pelo pânico de determinados indivíduos que não têm outra razão para viver senão servir apenas os sentidos, abrindo mão do livre arbítrio, agindo como animais sem raciocínio.

Nesta semana, um mito soviético começou a marchar para o passado, para a história, para a consagração devida aos libertadores de povos. Antes, todavia, como todos os realizadores, todos os que produzem obras que permanecem e que vencem a própria efemeridade de seus autores, passará por decepções, por ingratidões, até por um temporário esquecimento. Porém a posteridade saberá fazer justiça a Mikhail Gorbachev, por haver ensinado, passo a passo, pacientemente, com cautela mas com coragem, os soviéticos a sentirem o gosto da democracia.

Se um mito inicia sua caminhada rumo à história, outro projeta-se para o futuro, tendo diante de si o desafio de recolher os estilhaços de uma superpotência que, embora enviando sondas espaciais a outros planetas, não era capaz de fabricar uma geladeira decente; apesar de ter as mais sofisticadas máquinas de destruição em massa, não produzia sapatos suficientes para todos; a despeito de liderar metade da humanidade com pulso firme, era incompetente para dar bem estar e tranqüilidade a seu próprio povo.

A impressão que se tem é a de que Gorbachev começará a sair de cena aos poucos, discretamente, certo de que seu papel de pioneiro, de desbravador, de libertador de povos foi cumprido. Em seu lugar ficará um seu pupilo, que ele buscou em Sverdlovsk, na Sibéria, e que tem pressa em completar a tarefa que o mesmo iniciou: Bóris Yeltsin.

Enquanto o mentor da perestroika sofria os naturais desgastes do poder numa sociedade em crise, à beira do caos, seu ex-aliado, depois rival e agora resgatador, capitalizava o descontentamento existente. Ninguém em sã consciência poderá jamais negar o heroísmo, o desprendimento, a firmeza do presidente russo.

Mas o homem que rompeu o monolitismo comunista, que libertou o Leste europeu da ditadura, que sepultou a guerra fria no cemitério da história, que foi o catalisador de uma nova era, repleta de desafios, mas pródiga de esperança, deve ser sempre lembrado. Gorbachev é o início, Yeltsin o objetivo da longa e penosa caminhada dos povos soviéticos.

(Artigo publicado na página 24, Internacional, do Correio Popular, em 25 de agosto de 1991).


Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk        

No comments: