Mudando
a forma de pensar
Pedro J. Bondaczuk
O
ativista anti-apartheid sul-africano Steve Biko, que morreu assassinado em uma
prisão de seu país em mãos da polícia racista branca, afirmou, em certa
ocasião, em entrevista, quando lhe perguntaram por que se empenhava tanto numa
missão que então era tida como absolutamente impossível, que era a de criar uma
democracia multirracial na África do Sul: "Se você mudar a forma de as
pessoas pensarem, as coisas nunca mais serão as mesmas".
Pena
que ele não viveu para ver o resultado de sua pregação. Não pôde assistir ao
milagre, a redenção dos negros do seu país. Não viu a magnífica vitória nas
urnas do Congresso Nacional Africano. Não presenciou a miraculosa trajetória de
seu ídolo e mito, Nelson Mandela, do cárcere para a Presidência. Mas foi, em
grande parte, responsável por esses fatos miraculosos. Ajudou as pessoas do seu
país a mudar a forma de pensar. E as coisas, na África do Sul, nunca mais serão
as mesmas... Para o bem ou para o mal...
Todos
ficamos chocados, e revoltados, com a corrupção instalada à sombra do poder.
Revestimo-nos de justa e santa ira diante de indecentes negociatas, de
criminosas roubalheiras, que volta e meia vêm a público sem que os infratores
sejam devidamente punidos. Principalmente quando sabemos que esse dinheiro
surrupiado foi o dos nossos suados impostos. E que se destinava a financiar a
fundamental educação, a indispensável saúde, a estratégica assistência social,
a básica segurança pública: num País tão repleto de problemas e de carências.
Exercitamos,
posto que passivamente, nosso senso ético. Todavia, salvo raras e honrosas
exceções, abrimos mão do exercício da cidadania. De nada vale a emoção sem a
correspondente ação. Na ausência de uma pressão adequada disso que é chamado de
"Opinião Pública", a maioria dos infratores saiu rindo da população.
Volta e meia a bandalheira é abafada ou termina, como costumamos dizer, em
"pizza". O Congresso, não raro, zomba dos brasileiros. Seus membros
esmeram-se na inércia, especializam-se em discursos vazios, mostram-se peritos
em cinismo. E tudo em nosso nome...
Fomos
nós que elegemos seus membros! Quando votamos neles, demos-lhes procuração para
que decidissem por nós, pois é isso o que o voto representa, e não cobramos
nada desses procuradores infiéis. Limitamo-nos a críticas inócuas, em casa, na
rua, nos pontos de ônibus, nas escolas, em bares e até na imprensa. Mas o
fazemos de forma isolada, solitária, desalentada, quase que em desabafo. Nosso
clamor não chega a Brasília, a esta "ilha da fantasia" onde nossos
representantes se refugiam.
Muitos,
quando abordados a respeito, desconversam e sentenciam: "não gosto e não
entendo de política". Pode até ser. Mas tais pessoas confessam, então, não
entender os próprios atos que praticam no cotidiano. Não compreendem o que
fazem todos os dias, desde o momento em que acordam, até que se deitam.
"Política", queridos leitores, é todo o ato que praticamos na
"pólis", na cidade. Quando pela manhã, cumprimentamos nosso vizinho,
quando pagamos nossa passagem no ônibus, quando assistimos a uma aula, quando
realizamos nosso trabalho, quando saldamos uma conta no banco ou no caixa de
uma loja, quando efetuamos uma compra ou venda no comércio, quando gozamos
nosso lazer, estamos fazendo esse exercício que apregoamos "não entender e
não gostar". Gostemos de fato ou não dele. Entendamos ou não de política.
Tenhamos ou não consciência disso.
O
outro conceito, muito citado, mas pouco entendido é o da ética. É necessário
defini-lo e diferenciá-lo de moral, de virtude e de direito. Para isso, recorro
a alguns pensadores, muito mais aptos do que eu para fixar com clareza e
propriedade esses princípios. O escritor Guilherme de Figueiredo, autor do
bem-humorado e inteligente livro "Tratado Universal do Chato", explica
o que significa essa palavra, tão utilizada, mas pouco compreendida:
"A
ética é a observação e todo o caldo de cultura da tribo humana. Pode variar em
latitudes, em temperaturas, em paisagens, em tudo: as éticas estão lá,
registrando a uns que não se deve andar com o sexo à mostra, a outros que a
sociedade condena o furto, a outros que é proibido comer carne humana". Ao
contrário da moral, que é ciência normativa, não impõe nada ao indivíduo. É uma
disciplina meramente especulativa. Estuda a ação e a conduta do homem,
procurando a justificação racional dos juízos de valor, dos nossos julgamentos
de certo e errado. Distingue-se, igualmente, do estudo dos costumes, que é do
âmbito da sociologia e que se limita a descrever o modo de agir de um grupo humano
em determinado tempo ou época.
Para
o professor da Universidade de São Paulo, Eduardo Gianetti da Fonseca, "a
ética é um filtro. Ela existe para impedir, em alguma medida, que aquilo que
nos acontece espontaneamente – o sentimento agudo de medo numa situação de
perigo por exemplo – determine sem mediação aquilo que faremos ao agir no
mundo. A ética opera como um filtro que modela e modera o apelo dos estados
mentais em relação aos quais somos passivos, de modo a atenuar seu poder sobre
nossas ações – por exemplo, impedindo que numa situação de perigo coletivo,
cada um se entregue cegamente ao impulso de sobrevivência".
O
pensador francês Giles Lipovetsky aclara um pouco mais este complexo conceito.
Ensina que "a ética se mostra menos preocupada com intenções puras do que
com resultados benéficos para o homem, que não exige heroísmo nem altruísmo, mas
o espírito de responsabilidade e compromisso razoáveis". E o filósofo
francês Jacques Duquesnes estabelece a principal diferença entre o senso ético
e o de moralidade: "A ética não tem obrigação e nem punição, é menos
dolorosa do que a moral". Depende, portanto, da consciência, que advém da
educação. Esta última é a palavra-chave, a verdadeira raiz dos problemas do
País. Nosso povo, em sua massacrante maioria, ou não é educado ou o é de forma
equivocada. Daí a atual inversão de valores.
Vivemos
em uma sociedade em que moral é algo encarado como "quadrado",
"careta" e outras designações muito mais contundentes. Moralismo,
hoje em dia, é visto como defeito, como sinônimo de chatice, que tudo proíbe.
Este período é caracterizado essencialmente pelo "libera geral", pela
decadência dos costumes, pela irresponsável e catastrófica permissividade. Há
lei? Vamos burlá-la! Existe impedimento moral para determinado ato, como lesar
nosso semelhante menos esclarecido numa transação qualquer? Mostremos nossa esperteza!
Busquemos levar vantagem em tudo! Com essa mentalidade predominando no dia a
dia, podemos condenar um deputado, ou um senador, que manipula o Orçamento da
União para desviar polpudas importâncias para sua conta corrente particular?
Não seria uma incongruência? Afinal, esse ato lesivo aos cofres públicos é
manifestação de "esperteza" pelos parâmetros comportamentais
implícitos, vigentes na sociedade. Os políticos profissionais, queiram ou não,
refletem o comportamento da comunidade de onde emergem e à qual representam.
São
frutos da sua falta de consciência sobre o certo e o errado, sobre o bem e o
mal. É dessa forma errada de pensar que Steve Biko falava. Se a mudarmos, e
essa mudança tem que começar individualmente, em cada um de nós, as coisas
nunca mais serão as mesmas. Tão aético quanto manipular o Orçamento da União é
transacionar o voto. É trocá-lo por promessa de emprego para si ou para
parentes. É violentar a própria consciência e votar em alguém a troco de
dinheiro, cesta básica ou qualquer outra vantagem, material ou não.
Tão
aético quanto um deputado ou senador aumentar o próprio salário, quando os dos
demais trabalhadores estão achatados ou congelados, é o cidadão sonegar
impostos. Não há corruptos sem os respectivos corruptores. Isto é para lá de
óbvio, mas muitos parecem não entender. Não quero me alongar mais nestas
considerações. Encerro, pois, estas reflexões com uma declaração do poeta
Affonso Romano de Sant'Anna que reflete bem o comportamento do ser humano em
todos os tempos, que diz: "Assim se faz a história: com a agressividade de
poucos, com a ingenuidade de muitos e a dialética dos tolos".
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