Tradição
e modernidade
Pedro J.
Bondaczuk
O cientista social Walter Benjamin definiu da
seguinte forma a tarefa dos intelectuais do seu século, o XIX (aí incluídos,
claro, os escritores): “Desbravar regiões, nas quais até agora vicejava a
loucura. Avançar com o machado afiado da razão, sem olhar para a direita e nem
para a esquerda, para não ser vítima do horror que atrai do fundo da mata
virgem. Todo chão teve que ser desbravado alguma vez pela razão. Limpo do
emaranhado, da ilusão e do mito. Esta é a nossa tarefa para o chão do século
XIX”.
E a nossa tarefa, neste século XXI, é diferente?
Afinal, qual é? O século XX foi, como destacou o escritor russo Aleksandr
Soljenytsin, caracterizado pela busca frenética do “novo”. Não importou muito
se para instalar as novidades, valores eternos tiveram que ser postos de lado.
A procura por mudanças foi, e ainda é, maníaca. Transformou-se em obsessão!
Através dos tempos, as várias civilizações sempre
procuraram encontrar a dosagem ideal entre tradição e modernidade para nortear
seu rumo. A dose podia variar, mas os dois conceitos sempre estavam presentes,
quer na vida cultural, quer no procedimento político e social.
Hoje, a coisa já não é bem assim, embora não se
possa (e nem se deva) generalizar. O pseudomodernismo domina a maior parte das
cabeças pensantes. Surgiram a metalinguagem, o concretismo, o surrealismo e
outros tantos rótulos para designar coisas que são, na verdade, velhas, muito
velhas. Velhíssimas!
Depois de 13 mil anos de civilização, é virtualmente
impossível alguém ser original, em termos de idéias e de ações. Tudo o que
pensamos ou fazemos, alguém já pensou ou fez, embora a linguagem utilizada e a
mensagem transmitida tivessem aspectos diferentes, nuances próprias. Isso
mesmo, apenas nuances!
O cineasta Hector Babenco acentuou, certa feita, em
entrevista: “Querer ser moderno já é uma atitude velha”. Aquilo que hoje recebe
esse rótulo, amanhã, certamente, estará envelhecido, defasado, ultrapassado, se
o fator tradição se fizer ausente.
O filósofo francês, Jean Baudrillard, observou: “A
idéia de universalização do mundo está esgotada. O Planeta está tomado, então,
por uma tendência ao revisionismo, por uma renúncia às formas da modernidade,
por um arrependimento. Não é por acaso que os conflitos étnicos, as guerras
religiosas, a fragmentação estão retornando. A modernidade se torna
insuportável. Mas nada disso é solução”.
A tarefa dos intelectuais (e, por conseqüência, dos
escritores) para este século, portanto,
será redobrada. Eles terão que reconstruir, primeiro, o que foi destruído, com
o abandono da tradição. Depois, retomar o que Walter Benjamin previa para o seu
tempo e para a sua geração. Ou seja, “desbravar regiões, nas quais até agora a
loucura viceja”.
Baudrillard sustenta: “Para mim, o mundo, a
natureza, o cosmos, não importa como você preferir chamar, está em metamorfose,
em regulação. Mas
essa regulação não é jurídica, contratual, abstrata. Há elementos irredutíveis
na natureza que não podem ser simbolizados em contrato. É uma paranóia achar
que o homem vai ajudar o mundo a sobreviver. O homem destruiu, mas não sabe,
nem pode, reconstruir”. Poderíamos, pelo menos, preservar as conquistas da arte
e da cultura, notadamente das letras, em nossa cidade? É um desafio que se
impõe a todos nós.
A cultura é, em geral, mal-interpretada, até pelos
que se alimentam e vivem dela. Trata-se do conjunto de criações, vivências e
conhecimentos, em todas as áreas de atividades,
frutos da experiência e da racionalidade, precioso patrimônio dos povos,
que se acumula, e é aumentado, com o passar dos anos, através das sucessivas
gerações. É a herança maior que recebemos dos antepassados, ampliamos (ou temos
o dever moral de ampliar), dando a nossa contribuição para o avanço da
civilização, e transmitimos aos nossos descendentes, que por sua parte deverão
agir de idêntica forma.
O escritor George Simenon, em carta escrita em 9 de
novembro de 1976 ao cineasta italiano Federico Fellini (reproduzida no caderno
"Mais!" do jornal "Folha de S. Paulo" em 14 de fevereiro de
1999), constatou: "Nós somos um pouco como as esponjas que sugam a vida
sem o saber e a devolvem em seguida, transformada, sem conhecer o trabalho de
alquimia que se produziu em nós".
A cultura, portanto, é o "suco", a
essência, a alma, a parte nobre da vida. Daí a importância da ação de pessoas
e/ou instituições que atuem no sentido da sua ampliação ou, na pior das
hipóteses, da sua preservação. Por isso, a relevância e o significado da ação
das várias academias, de letras, de ciências, de cinema, etc.etc.etc. Elas são
(ou deveriam ser) as legítimas guardiãs da tradição das respectivas atividades.
O poeta português Fernando Pessoa, em lúcido texto
publicado na década de 1920, intitulado "Presença da cultura grega",
assim se manifestou: "Tem duas formas, ou modos, o que chamamos cultura.
Não é a cultura senão o aperfeiçoamento subjetivo da vida. Esse aperfeiçoamento
é direto ou indireto. Ao primeiro se chama arte, ciência ao segundo. Pela arte
nos aperfeiçoamos a nós, pela ciência aperfeiçoamos em nós o conceito ou ilusão
do mundo". E as academias, reitero, são lídimas guardiãs das tradições das
suas respectivas atividades.
Porém, se temos por missão sermos tradicionais, em
termos de idéias e preservação daqueles valores testados e aprovados pelo
tempo, podemos e devemos ser ousados quanto aos meios empregados para a
consecução dos nossos objetivos. O objetivo, óbvio, de todo escritor é o de ser
lido e pelo número máximo de pessoas que o seu texto possa atingir. E, por
conseqüência, o nosso, claro, também é este. Mas temos o dever de oferecer-lhes
o melhor, da forma mais acessível e universal possível. Pense nisso. Voltarei
ao tema.
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