Friday, November 28, 2014

Tradição e modernidade

Pedro J. Bondaczuk

O cientista social Walter Benjamin definiu da seguinte forma a tarefa dos intelectuais do seu século, o XIX (aí incluídos, claro, os escritores): “Desbravar regiões, nas quais até agora vicejava a loucura. Avançar com o machado afiado da razão, sem olhar para a direita e nem para a esquerda, para não ser vítima do horror que atrai do fundo da mata virgem. Todo chão teve que ser desbravado alguma vez pela razão. Limpo do emaranhado, da ilusão e do mito. Esta é a nossa tarefa para o chão do século XIX”.

E a nossa tarefa, neste século XXI, é diferente? Afinal, qual é? O século XX foi, como destacou o escritor russo Aleksandr Soljenytsin, caracterizado pela busca frenética do “novo”. Não importou muito se para instalar as novidades, valores eternos tiveram que ser postos de lado. A procura por mudanças foi, e ainda é, maníaca. Transformou-se em obsessão!

Através dos tempos, as várias civilizações sempre procuraram encontrar a dosagem ideal entre tradição e modernidade para nortear seu rumo. A dose podia variar, mas os dois conceitos sempre estavam presentes, quer na vida cultural, quer no procedimento político e social.

Hoje, a coisa já não é bem assim, embora não se possa (e nem se deva) generalizar. O pseudomodernismo domina a maior parte das cabeças pensantes. Surgiram a metalinguagem, o concretismo, o surrealismo e outros tantos rótulos para designar coisas que são, na verdade, velhas, muito velhas. Velhíssimas!

Depois de 13 mil anos de civilização, é virtualmente impossível alguém ser original, em termos de idéias e de ações. Tudo o que pensamos ou fazemos, alguém já pensou ou fez, embora a linguagem utilizada e a mensagem transmitida tivessem aspectos diferentes, nuances próprias. Isso mesmo, apenas nuances!

O cineasta Hector Babenco acentuou, certa feita, em entrevista: “Querer ser moderno já é uma atitude velha”. Aquilo que hoje recebe esse rótulo, amanhã, certamente, estará envelhecido, defasado, ultrapassado, se o fator tradição se fizer ausente.

O filósofo francês, Jean Baudrillard, observou: “A idéia de universalização do mundo está esgotada. O Planeta está tomado, então, por uma tendência ao revisionismo, por uma renúncia às formas da modernidade, por um arrependimento. Não é por acaso que os conflitos étnicos, as guerras religiosas, a fragmentação estão retornando. A modernidade se torna insuportável. Mas nada disso é solução”.

A tarefa dos intelectuais (e, por conseqüência, dos escritores)  para este século, portanto, será redobrada. Eles terão que reconstruir, primeiro, o que foi destruído, com o abandono da tradição. Depois, retomar o que Walter Benjamin previa para o seu tempo e para a sua geração. Ou seja, “desbravar regiões, nas quais até agora a loucura viceja”.

Baudrillard sustenta: “Para mim, o mundo, a natureza, o cosmos, não importa como você preferir chamar, está em metamorfose, em regulação. Mas essa regulação não é jurídica, contratual, abstrata. Há elementos irredutíveis na natureza que não podem ser simbolizados em contrato. É uma paranóia achar que o homem vai ajudar o mundo a sobreviver. O homem destruiu, mas não sabe, nem pode, reconstruir”. Poderíamos, pelo menos, preservar as conquistas da arte e da cultura, notadamente das letras, em nossa cidade? É um desafio que se impõe a todos nós.

A cultura é, em geral, mal-interpretada, até pelos que se alimentam e vivem dela. Trata-se do conjunto de criações, vivências e conhecimentos, em todas as áreas de atividades,  frutos da experiência e da racionalidade, precioso patrimônio dos povos, que se acumula, e é aumentado, com o passar dos anos, através das sucessivas gerações. É a herança maior que recebemos dos antepassados, ampliamos (ou temos o dever moral de ampliar), dando a nossa contribuição para o avanço da civilização, e transmitimos aos nossos descendentes, que por sua parte deverão agir de idêntica forma.

O escritor George Simenon, em carta escrita em 9 de novembro de 1976 ao cineasta italiano Federico Fellini (reproduzida no caderno "Mais!" do jornal "Folha de S. Paulo" em 14 de fevereiro de 1999), constatou: "Nós somos um pouco como as esponjas que sugam a vida sem o saber e a devolvem em seguida, transformada, sem conhecer o trabalho de alquimia que se produziu em nós".

A cultura, portanto, é o "suco", a essência, a alma, a parte nobre da vida. Daí a importância da ação de pessoas e/ou instituições que atuem no sentido da sua ampliação ou, na pior das hipóteses, da sua preservação. Por isso, a relevância e o significado da ação das várias academias, de letras, de ciências, de cinema, etc.etc.etc. Elas são (ou deveriam ser) as legítimas guardiãs da tradição das respectivas atividades.

O poeta português Fernando Pessoa, em lúcido texto publicado na década de 1920, intitulado "Presença da cultura grega", assim se manifestou: "Tem duas formas, ou modos, o que chamamos cultura. Não é a cultura senão o aperfeiçoamento subjetivo da vida. Esse aperfeiçoamento é direto ou indireto. Ao primeiro se chama arte, ciência ao segundo. Pela arte nos aperfeiçoamos a nós, pela ciência aperfeiçoamos em nós o conceito ou ilusão do mundo". E as academias, reitero, são lídimas guardiãs das tradições das suas respectivas atividades.

Porém, se temos por missão sermos tradicionais, em termos de idéias e preservação daqueles valores testados e aprovados pelo tempo, podemos e devemos ser ousados quanto aos meios empregados para a consecução dos nossos objetivos. O objetivo, óbvio, de todo escritor é o de ser lido e pelo número máximo de pessoas que o seu texto possa atingir. E, por conseqüência, o nosso, claro, também é este. Mas temos o dever de oferecer-lhes o melhor, da forma mais acessível e universal possível. Pense nisso. Voltarei ao tema.


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