Pretória promove "perestroika" racial
Pedro J.
Bondaczuk
O presidente da África do Sul, Frederik de Klerk,
conhecido como "Gorbachev sul-africano" pelas corajosas reformas
raciais que vem empreendendo, obteve um novo êxito, anteontem, em seu objetivo
de pacificar o país, com a abolição, por parte do Parlamento, da última lei
segregacionista: a do registro obrigatório de cidadãos por raça. Como o líder
do Cremlin, a dramática revolução que ele encetou foi acompanhada desde o
início de ceticismo, para não dizer, de completo descrédito.
Todavia, isto não foi o bastante para o demover de
sua promessa de romper o isolamento internacional a que essa sociedade está
submetida há alguns anos, por obra e graça somente de suas idéias
preconceituosas.
Há um episódio pitoresco, que convém ser relembrado,
envolvendo soviéticos e sul-africanos. Em 1987, quando o líder nacionalista
negro, Nelson Mandela, foi acometido de tuberculose e quando parecia que seu
destino seria a morte na prisão, se levantou uma campanha, no mundo todo, por
sua libertação.
Entre tantos estadistas que fizeram apelos em seu
favor, estava Mikhail Gorbachev. Na oportunidade, o Cremlin não tinha
"cacife" para exigir o que quer que fosse em termos de direitos
humanos. Afinal, o físico dissidente, Andrei Sakharov, permanecia confinado em
exílio interno em Gorki, a 400 quilômetros de Moscou; as tropas do Exército
Vermelho ocupavam o Afeganistão e Anatoly Scharansky, por mais que tentasse,
não conseguia obter autorização para emigrar para Israel.
Em resposta ao pedido do presidente soviético, o
governante sul-africano de então, Pieter Botha, fez um desafio. Garantiu que
libertaria Nelson Mandela se Gorbachev ordenasse a demolição do Muro de Berlim.
O líder do Cremlin, como é do conhecimento geral, se não derrubou a muralha da
discórdia e da vergonha, que dividia povos irmãos, não se opôs à sua derrubada
quando ela aconteceu.
E foi mais longe. Retirou suas tropas do
Afeganistão, libertou Sakharov, que terminou sua vida atuando diretamente na
política como deputado e preparando a fundação de um novo partido e de oposição
aos comunistas e Scharansky pôde, afinal, ir para Israel.
Mas seu avanço rumo à democracia foi muito maior.
Através da "perestroika", mudou o mapa da Europa contemporânea,
permitindo que o Leste europeu se libertasse do comunismo e sepultou de vez a
guerra fria. Gorbachev, portanto, fez o que Botha não acreditava.
Mas este não teve coragem para dar liberdade a
Mandela. De Klerk, seu sucessor, todavia, realizou finalmente este gesto
humanitário e sobretudo justo. E também avançou muito além do que qualquer
analista julgava ser possível.
Restaurou os direitos do Congresso Nacional
Africano, permitiu o regresso de exilados, autorizou manifestações e comícios
contra o apartheid, desde que pacíficos, e culminou sua obra com o desmonte de
todo o arcabouço legal do estúpido segregacionismo racial institucionalizado.
É verdade que ainda falta o direito de votar e ser
votado dos negros. Como a perestroika permanece devendo muita coisa a eu se
propôs na União Soviética. Mas, guardadas as devidas proporções, as duas
reformas podem ser consideradas as mais espetaculares revoluções pacíficas
deste final de milênio. Afinal, como acentuou uma pichação na parede de uma
repartição pública de Pretória, em fins de 1985, no auge da repressão aos
opositores do racismo: “Podem levar nossos líderes, acabar com nossas vidas,
mas não com nossas convicções".
Pessoas, na sua fragilidade humana, são passivas de
morte pelas armas. Idéias, todavia, resistem a qualquer espécie de violência e
quanto mais se tenta sufocá-las pela truculência, mais e mais viçosas e fortes
elas se tornam. Ditadores e ditaduras ainda não conseguiram entender isso.
(Artigo publicado na página 17, Internacional, do
Correio Popular, em 19 de junho de 1991).
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