Infinita
gratidão
Pedro J. Bondaczuk
O
escritor, caso deseje conquistar a desejável – diria imprescindível –
credibilidade, não pode ter escrúpulos ao redigir seus textos. Tem que ser
completamente sincero. abrir mão por completo do pudor e se desnudar,
espiritualmente, em público, sem nada esconder, principalmente quando escrever
a seu próprio respeito. Não pode ter temas tabus. É o que pretendo fazer.
A
pedido dos leitores, escrevi, nesta coluna, que não por acaso se intitula
“Ladeira da Memória”, resumidíssimo esboço biográfico, mesmo a contragosto, mas
para satisfazer a curiosidade dos que querem me conhecer melhor. Creiam, esse
desejo me envaidece. Desfiei uma série de sucessos pessoais e profissionais,
mas não revelei como cheguei a eles. Muitos acharam insuficientes essas
revelações. Recebi uma infinidade de e-mails, solicitando maiores detalhes.
Pois lá vão eles. Só que, são tantos, que precisarei de algumas crônicas
memorialísticas para trazer os principais à baila. E começo com uma revelação.
Quem
me conhece pessoalmente, por haver trabalhado comigo, ou me conhecido em alguma
reunião social, palestra que proferi, entrevista que dei à televisão etc., sabe
que sou portador de defeito físico. É sobre isso que pretendo tratar hoje.
Permitam-me fazê-lo, mediante algumas digressões, que entendo pertinentes.
A palavra "oportunidade" pressupõe
estreita vinculação com uma virtude, muito apregoada e pouco praticada: a
gratidão. Sozinhos não somos nada. Todavia, em nossa arrogância, raramente
somos capazes de admitir isso e muito menos em público. Quase nunca sabemos
agradecer aos que nos deram alguma oportunidade, qualquer que seja.
Da minha parte, no entanto, tenho essa consciência
desde a infância, tendo em vista as milhares de pessoas e entidades que me
ajudaram nos momentos mais agudos de crise (sem as quais eu não seria ninguém),
permitindo que eu crescesse, me desenvolvesse e me tornasse um cidadão útil e
ativo, integrado na sociedade e feliz, dentro daquilo que se entende geralmente
por felicidade. E, sobretudo, positivo, otimista e bem humorado
Sou oriundo de uma família de imigrantes russos, que
se estabeleceu no Rio Grande do Sul, em meados da década de 30. Aos seis anos
de idade, fui acometido de poliomielite. Como no interior gaúcho, na
recém-criada Horizontina, noroeste do Estado, não havia recursos para o
tratamento, meus pais vieram para São Paulo, sem conhecer nada e ninguém, nem
mesmo a língua deste País.
Aconselhados por uma assistente social, e cientes de
que, se nada fosse feito, eu não teria qualquer futuro, a não ser, quem sabe,
pedir esmolas nas esquinas, me internaram em uma instituição para recuperação
de crianças paralíticas, localizada na Rua França Pinto, 783, na Vila
Clementino.
O Lar Escola São Francisco, nome dessa entidade, foi
criado graças à compaixão e ao raro senso de humanidade e de solidariedade de
uma senhora da alta sociedade paulistana: Maria Hecilda Campos Salgado.
Em uma determinada ocasião, essa nobre senhora (que
tem o perfil de santa e pode ser colocada, pelo que foi e pelo que fez, ao lado
de Irmã Dulce e de Madre Teresa de Calcutá) foi visitar um abrigo de menores,
em São Paulo, o que hoje seria a Febem. Ali, entre dezenas de crianças e
adolescentes, percebeu treze que eram deficientes físicos e que sofriam, por
causa da sua fragilidade, constantes agressões dos considerados
"normais", naquele ambiente doentio e violento, verdadeira fábrica de
marginais.
Conversando com um desses adolescentes,
perguntou-lhe o que pretendia ser na vida. "Bandido!", foi a resposta
seca e incisiva. Isso chocou-a sobremaneira. As respostas dos outros doze não
fugiram muito desse tom, variando apenas na maneira de dizer.
Naquela noite, dona Maria não conseguiu dormir.
Sentia que precisava fazer alguma coisa em favor daqueles meninos, mas não
sabia o quê. Tinha um casarão desocupado na Rua França Pinto e decidiu que a
primeira providência seria transferir esses treze infelizes para lá e depois
pensar numa forma de tratá-los. E foi o que fez. Lutando com enormes
dificuldades, inclusive financeiras, embora contasse com razoável patrimônio,
foi fazendo melhorias na instituição que criou impulsivamente.
Ergueu novos dormitórios. Construiu oficinas de
marcenaria, encadernação, sapataria, de fabricação de cestas de vime, de
conserto de rádio, etc. As ampliações não paravam. As obras eram constantes,
mesmo com a falta crônica de dinheiro. Recursos foram surgindo de donativos e
de chás beneficentes das senhoras da alta sociedade paulistana. Em pouco tempo,
surgiram as salas de fisioterapia, a enfermaria, a farmácia, etc.
Contratou funcionários: governante, cozinheiras,
arrumadeiras, etc. Depois, conseguiu o apoio de médicos, que passaram a atender
os internos gratuitamente. A eles juntaram-se dentistas, fisioterapeutas,
psicólogos, assistentes sociais, etc. Do nada, surgiu uma instituição, única no
gênero na América Latina (precedeu a Associação de Assistência à Criança
Defeituosa).
Ao grupo original de 13 adolescentes, outras
crianças com defeito físico e carentes foram se juntando. Algumas, levadas
pelos pais, que viam na instituição a única e desesperada alternativa para os
filhos. Outras, abandonadas, rejeitadas pelas famílias que se não fossem
amparadas, certamente morreriam à míngua. Em pouco tempo, o grupo original
ascendeu a uma centena.
Foi essa mão salvadora que se estendeu aos meus pais
e me recebeu com carinho e abnegação em 1950. Na ocasião, eu não podia andar.
Apenas me arrastava ou era carregado nos braços fortes do meu pai, um
batalhador que nunca me abandonou, mesmo tendo que suportar minha ausência, ao
me internar no Lar Escola São Francisco.
Dá para imaginar a revolta que me dominava, por
haver sido atingido por uma doença que me privara dos movimentos, da locomoção
e me tornava uma "pessoa diferente", mutilada, deformada e encarada
com piedade por uns e escárnio por outros. O primeiro passo, na instituição,
foi o de recuperação física. Graças a algumas cirurgias corretivas e muita
fisioterapia, comecei a aprender a andar de muletas. Foi uma batalha solitária
e heróica.
Pretendendo preparar-me para enfrentar um mundo
difícil, que não dá qualquer facilidade a quem possua alguma deficiência, os
fisioterapeutas me expunham, principalmente, a escadas. Foram dias e mais dias
de treinamento, subindo e descendo, com o risco de rolar degraus abaixo, até a
exaustão. Hoje, com quase 71 anos, sou absolutamente autônomo e normal,
exercendo minhas atividades profissionais e sociais. Tomava ônibus, enquanto
não tinha veículo próprio, to,o avião, trem etc. sem nenhum receio. Devo tudo
isso a esses abnegados, que extraíram do meu âmago toda a força de vontade que
lá estava escondida.
O passo seguinte, foi a recuperação psicológica.
Ensinaram-me a me aceitar como eu era e a me amar, com defeito ou sem ele. Isto
foi fundamental, seis anos mais tarde, quando deixei o Lar Escola. Fez com que,
até hoje, outras pessoas me aceitassem e amassem também.
O último passo foi a ressocialização, antes de me
devolver à sociedade. Completei o curso primário na instituição, sendo que no
último ano freqüentei o Grupo Escolar Marechal Floriano, na Avenida Domingos de
Morais, na Vila Mariana, embora continuasse morando nessa casa, nesse centro de
amor e de compreensão, que justamente
ostentava em seu nome aquilo que de fato sempre foi: um lar. Embora entrasse
nessa escola no segundo semestre, consegui espantosa recuperação, pelo que
recebi, além do diploma, uma medalha no final do ano, por haver passado em
terceiro lugar da turma.
Em dezembro de 1956, fui devolvido à sociedade, dado
como apto para enfrentar qualquer competição, condicionado psicologicamente a
jamais exigir ou aceitar qualquer espécie de privilégio. Fiz o ginásio, o
colegial e a universidade. Casei-me, gerei quatro filhos, os quais criei e eduquei,
dando-lhes o melhor que a vida pode oferecer. Hoje sou avô de dois lindos e
inteligentes netos, dos quais tenho justo orgulho. Entrei cedo no mercado de
trabalho, tendo trabalhado em diversas empresas – e por 53 anos, o que é uma
raridade, não somente no Brasil, como no mundo, sem ter a mínima facilidade. Sempre
fiz tudo o que os demais funcionários faziam, sem nenhuma espécie, por mínima
que fosse, de privilégio. Até porque, a legislação concedendo algum tipo de
proteção às pessoas com deficiência é recentíssima.
Descobri o jornalismo, via rádio. Desenvolvi um
talento, descoberto pelas psicólogas do Lar Escola, para escrever e tornei-me
jornalista. Durante todos esses anos, obtive oportunidades e dei a recíproca da
gratidão. Mas uma idéia sempre me incomodou: precisava retribuir, de alguma
forma, à instituição que me redimiu, me tornando um homem. Mas como? Rico nunca
fui, embora tenha um padrão de vida razoável! Não sou médico (embora fizesse um
ano de medicina), nem psicólogo e muito menos fisioterapeuta! O que fazer?
Esta é uma dívida que ainda não consegui pagar, mas
que acredito – não sei de que maneira – um dia haverei de conseguir. Afinal, é
infinita e ilimitada a gratidão que tenho por dona Maria Hecilda Campos Salgado,
essa santa que já é falecida e pelas pessoas que a sucederam, nessa obra de
desinteressado desprendimento, de amor e de rara e preciosa solidariedade.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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