Thursday, September 19, 2013

Infinita gratidão

Pedro J. Bondaczuk


O escritor, caso deseje conquistar a desejável – diria imprescindível – credibilidade, não pode ter escrúpulos ao redigir seus textos. Tem que ser completamente sincero. abrir mão por completo do pudor e se desnudar, espiritualmente, em público, sem nada esconder, principalmente quando escrever a seu próprio respeito. Não pode ter temas tabus. É o que pretendo fazer.

A pedido dos leitores, escrevi, nesta coluna, que não por acaso se intitula “Ladeira da Memória”, resumidíssimo esboço biográfico, mesmo a contragosto, mas para satisfazer a curiosidade dos que querem me conhecer melhor. Creiam, esse desejo me envaidece. Desfiei uma série de sucessos pessoais e profissionais, mas não revelei como cheguei a eles. Muitos acharam insuficientes essas revelações. Recebi uma infinidade de e-mails, solicitando maiores detalhes. Pois lá vão eles. Só que, são tantos, que precisarei de algumas crônicas memorialísticas para trazer os principais à baila. E começo com uma revelação.

Quem me conhece pessoalmente, por haver trabalhado comigo, ou me conhecido em alguma reunião social, palestra que proferi, entrevista que dei à televisão etc., sabe que sou portador de defeito físico. É sobre isso que pretendo tratar hoje. Permitam-me fazê-lo, mediante algumas digressões, que entendo pertinentes.    

A palavra "oportunidade" pressupõe estreita vinculação com uma virtude, muito apregoada e pouco praticada: a gratidão. Sozinhos não somos nada. Todavia, em nossa arrogância, raramente somos capazes de admitir isso e muito menos em público. Quase nunca sabemos agradecer aos que nos deram alguma oportunidade, qualquer que seja.

Da minha parte, no entanto, tenho essa consciência desde a infância, tendo em vista as milhares de pessoas e entidades que me ajudaram nos momentos mais agudos de crise (sem as quais eu não seria ninguém), permitindo que eu crescesse, me desenvolvesse e me tornasse um cidadão útil e ativo, integrado na sociedade e feliz, dentro daquilo que se entende geralmente por felicidade. E, sobretudo, positivo, otimista e bem humorado

Sou oriundo de uma família de imigrantes russos, que se estabeleceu no Rio Grande do Sul, em meados da década de 30. Aos seis anos de idade, fui acometido de poliomielite. Como no interior gaúcho, na recém-criada Horizontina, noroeste do Estado, não havia recursos para o tratamento, meus pais vieram para São Paulo, sem conhecer nada e ninguém, nem mesmo a língua deste País.

Aconselhados por uma assistente social, e cientes de que, se nada fosse feito, eu não teria qualquer futuro, a não ser, quem sabe, pedir esmolas nas esquinas, me internaram em uma instituição para recuperação de crianças paralíticas, localizada na Rua França Pinto, 783, na Vila Clementino.

O Lar Escola São Francisco, nome dessa entidade, foi criado graças à compaixão e ao raro senso de humanidade e de solidariedade de uma senhora da alta sociedade paulistana: Maria Hecilda Campos Salgado.

Em uma determinada ocasião, essa nobre senhora (que tem o perfil de santa e pode ser colocada, pelo que foi e pelo que fez, ao lado de Irmã Dulce e de Madre Teresa de Calcutá) foi visitar um abrigo de menores, em São Paulo, o que hoje seria a Febem. Ali, entre dezenas de crianças e adolescentes, percebeu treze que eram deficientes físicos e que sofriam, por causa da sua fragilidade, constantes agressões dos considerados "normais", naquele ambiente doentio e violento, verdadeira fábrica de marginais.

Conversando com um desses adolescentes, perguntou-lhe o que pretendia ser na vida. "Bandido!", foi a resposta seca e incisiva. Isso chocou-a sobremaneira. As respostas dos outros doze não fugiram muito desse tom, variando apenas na maneira de dizer.

Naquela noite, dona Maria não conseguiu dormir. Sentia que precisava fazer alguma coisa em favor daqueles meninos, mas não sabia o quê. Tinha um casarão desocupado na Rua França Pinto e decidiu que a primeira providência seria transferir esses treze infelizes para lá e depois pensar numa forma de tratá-los. E foi o que fez. Lutando com enormes dificuldades, inclusive financeiras, embora contasse com razoável patrimônio, foi fazendo melhorias na instituição que criou impulsivamente.

Ergueu novos dormitórios. Construiu oficinas de marcenaria, encadernação, sapataria, de fabricação de cestas de vime, de conserto de rádio, etc. As ampliações não paravam. As obras eram constantes, mesmo com a falta crônica de dinheiro. Recursos foram surgindo de donativos e de chás beneficentes das senhoras da alta sociedade paulistana. Em pouco tempo, surgiram as salas de fisioterapia, a enfermaria, a farmácia, etc.

Contratou funcionários: governante, cozinheiras, arrumadeiras, etc. Depois, conseguiu o apoio de médicos, que passaram a atender os internos gratuitamente. A eles juntaram-se dentistas, fisioterapeutas, psicólogos, assistentes sociais, etc. Do nada, surgiu uma instituição, única no gênero na América Latina (precedeu a Associação de Assistência à Criança Defeituosa).

Ao grupo original de 13 adolescentes, outras crianças com defeito físico e carentes foram se juntando. Algumas, levadas pelos pais, que viam na instituição a única e desesperada alternativa para os filhos. Outras, abandonadas, rejeitadas pelas famílias que se não fossem amparadas, certamente morreriam à míngua. Em pouco tempo, o grupo original ascendeu a uma centena.

Foi essa mão salvadora que se estendeu aos meus pais e me recebeu com carinho e abnegação em 1950. Na ocasião, eu não podia andar. Apenas me arrastava ou era carregado nos braços fortes do meu pai, um batalhador que nunca me abandonou, mesmo tendo que suportar minha ausência, ao me internar no Lar Escola São Francisco.

Dá para imaginar a revolta que me dominava, por haver sido atingido por uma doença que me privara dos movimentos, da locomoção e me tornava uma "pessoa diferente", mutilada, deformada e encarada com piedade por uns e escárnio por outros. O primeiro passo, na instituição, foi o de recuperação física. Graças a algumas cirurgias corretivas e muita fisioterapia, comecei a aprender a andar de muletas. Foi uma batalha solitária e heróica.

Pretendendo preparar-me para enfrentar um mundo difícil, que não dá qualquer facilidade a quem possua alguma deficiência, os fisioterapeutas me expunham, principalmente, a escadas. Foram dias e mais dias de treinamento, subindo e descendo, com o risco de rolar degraus abaixo, até a exaustão. Hoje, com quase 71 anos, sou absolutamente autônomo e normal, exercendo minhas atividades profissionais e sociais. Tomava ônibus, enquanto não tinha veículo próprio, to,o avião, trem etc. sem nenhum receio. Devo tudo isso a esses abnegados, que extraíram do meu âmago toda a força de vontade que lá estava escondida.

O passo seguinte, foi a recuperação psicológica. Ensinaram-me a me aceitar como eu era e a me amar, com defeito ou sem ele. Isto foi fundamental, seis anos mais tarde, quando deixei o Lar Escola. Fez com que, até hoje, outras pessoas me aceitassem e amassem também.

O último passo foi a ressocialização, antes de me devolver à sociedade. Completei o curso primário na instituição, sendo que no último ano freqüentei o Grupo Escolar Marechal Floriano, na Avenida Domingos de Morais, na Vila Mariana, embora continuasse morando nessa casa, nesse centro de amor e de  compreensão, que justamente ostentava em seu nome aquilo que de fato sempre foi: um lar. Embora entrasse nessa escola no segundo semestre, consegui espantosa recuperação, pelo que recebi, além do diploma, uma medalha no final do ano, por haver passado em terceiro lugar da turma.

Em dezembro de 1956, fui devolvido à sociedade, dado como apto para enfrentar qualquer competição, condicionado psicologicamente a jamais exigir ou aceitar qualquer espécie de privilégio. Fiz o ginásio, o colegial e a universidade. Casei-me, gerei quatro filhos, os quais criei e eduquei, dando-lhes o melhor que a vida pode oferecer. Hoje sou avô de dois lindos e inteligentes netos, dos quais tenho justo orgulho. Entrei cedo no mercado de trabalho, tendo trabalhado em diversas empresas – e por 53 anos, o que é uma raridade, não somente no Brasil, como no mundo, sem ter a mínima facilidade. Sempre fiz tudo o que os demais funcionários faziam, sem nenhuma espécie, por mínima que fosse, de privilégio. Até porque, a legislação concedendo algum tipo de proteção às pessoas com deficiência é recentíssima.

Descobri o jornalismo, via rádio. Desenvolvi um talento, descoberto pelas psicólogas do Lar Escola, para escrever e tornei-me jornalista. Durante todos esses anos, obtive oportunidades e dei a recíproca da gratidão. Mas uma idéia sempre me incomodou: precisava retribuir, de alguma forma, à instituição que me redimiu, me tornando um homem. Mas como? Rico nunca fui, embora tenha um padrão de vida razoável! Não sou médico (embora fizesse um ano de medicina), nem psicólogo e muito menos fisioterapeuta! O que fazer?


Esta é uma dívida que ainda não consegui pagar, mas que acredito – não sei de que maneira – um dia haverei de conseguir. Afinal, é infinita e ilimitada a gratidão que tenho por dona Maria Hecilda Campos Salgado, essa santa que já é falecida e pelas pessoas que a sucederam, nessa obra de desinteressado desprendimento, de amor e de rara e preciosa solidariedade.

Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk

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