Wednesday, September 04, 2013

Flagrante de uma infidelidade

Pedro J. Bondaczuk

A vida de Richard Wagner foi tão agitada, tão rocambolesca, tão cheia de altos e baixos e recheada de tantas polêmicas, que é necessário agir com extrema cautela na filtragem do que é fato e do que descamba para a mera ficção. De todos os personagens cujas biografias já abordei (sempre com comentários a propósito, de episódios específicos e pontuais, aqueles que mais me chamaram a atenção), este é, disparado, o mais controvertido. Nem tem comparação. As controvérsias, é bom ressaltar, não se referem às suas obras musicais, cuja genialidade sempre foi reconhecida até pelos seus mais inconciliáveis inimigos. Mas sua vida...

E olhem que já tratei de personagens complicadíssimos, como Edgar Alan Poe, Fedor Dostoievski, Sigmund Freud, Andy Warhol, Salvador Dali, Jean-Luc Godard, Rembrandt e vai por aí afora. Mas as vidas dessas pessoas nem de longe se aproximam, em termos de dramas e de polêmicas, à de Wagner. Nesse aspecto ele é insuperável. Entre as grandes complicações que o envolveram, um dos que mais chamam a atenção foram seus amores, que merecem capítulos à\ parte. Foi casado, por exemplo, com Christine Wilhelmine “Minna” Planer, atriz, filha de um mecânico, com quem se casou em 21 de novembro de 1836 e de quem se divorciou cerca de dez anos depois, após um período turbulento repleto de acusações de infidelidade conjugal feitas pela mulher. E de um inesperado flagrante que ocorreu por puro acaso. Vamos aos fatos;

A pior das “puladas de cerca” de Wagner – a que o levou  à separação definitiva de Minna e ao divórcio, já que ambos haviam se separado várias vezes antes e tornado a se reconciliar – ocorreu em Zurique. Nessa cidade suíça, o compositor conheceu o rico empresário Otto Wesendock, que entre tantos negócios que tinha, era sócio de uma indústria de seda de Nova York. E entre suas múltiplas propriedades, havia construído uma gigantesca e suntuosa mansão nessa localidade alpina, de frente para o famoso lago que lá existe. O milionário, sujeito culto e refinado, era admirador incondicional da genialidade de Wagner. Esse, por sua vez, retribuía esse entusiasmo, mas de outra forma que não a da gratidão: encantou-se pela mulher de Otto, chamada Mathilde, encanto esse que ele sempre jurou ser meramente “espiritual”. Não era, óbvio, o que Minna achava.

O milionário, que vinha ajudando com doações o multi-endividado compositor – que, aliás, estava em Zurique para fugir dos seus credores em territórios alemães – cismou de construir, nos jardins de sua suntuosa residência, outra casa, um pouco menor do que a mansão, mas confortável e bastante aconchegante, que ofereceu a Wagner para que lá residisse, sem nada pagar. Claro que ele aceitou de bom grado. Pudera! A moradia era tão aprazível e de bom gosto que Mathilde a batizou de “Asylum”. A bela e tentadora mulher, claro, era presença constante ali, para desespero de Minna, que suspeitava que o marido tinha um caso com a beldade, embora este negasse de pés juntos e ela não tivesse como comprovar suas suspeitas.

Até que um dia... A traição veio à tona. Frise-se que Otto sabia da paixão da mulher pelo compositor e vice-versa, mas não se importava. Fingia desconhecer, por razões que só ele poderia explicar (mas nunca explicou). Minna obteve a prova de que era traída, que tanto torcia para não existir e para estar enganada, por absoluto acaso. Em certa manhã de abril de 1858, conforme relato que li na enciclopédia eletrônica Wikipédia, a atormentada e ciumenta mulher viu um empregado sair de sua casa carregando uns rolos de papel. Curiosa, quis conferir do que se tratava. Havia neles, entre outras coisas, o esboço da partitura do prelúdio da ópera “Tristão e Isolda”. Se fosse só isso, não haveria problema. Ocorre que não era. Havia, também, uma carta de Wagner para Mathilde. Mas não era nenhuma mensagem inocente, simples bilhete de gentileza. Longe disso. Era uma carta de amor em que o compositor explicitava, da maneira mais clara que se possa pensar, seus sentimentos pela beldade!

Para quê?! Minna, que por si só não era dada a gentilezas, ficou furiosa. Mais do que isso, ficou enlouquecida.  Foi de imediato ao quarto de Wagner e esfregou a comprometedora mensagem amorosa na cara do marido. Desfiou todo o dicionário de palavrões no idioma alemão e muito mais. Não contente, dirigiu-se à mansão, onde fez um escândalo para ninguém botar defeito. Falou tantos impropérios aos anfitriões, que estes se viram forçados a despejar o casal (que morava de favor, recorde-se) do “Asylum”.

Ambos foram embora, sim, mas não juntos como haviam chegado. Minna voltou sozinha para a casa da sua família na Saxônia. Wagner, por sua vez, foi para Veneza (de onde, meses depois, teve que fugir por não pagar suas dívidas). Dessa vez, ao contrário de outras tantas em que o casal havia se reconciliado, a separação foi definitiva. Não tardou para que os dois formalizassem o divórcio. Não havia outro remédio. O compositor sempre jurou que seu amor por Mathilde era meramente platônico, ou seja, “espiritual”. Ninguém jamais acreditou nisso. Você acreditaria? Eu não!

O relacionamento do casal, convenhamos, tinha tudo para dar errado desde o início. Ninguém jamais entendeu o que os levou ao casamento. Minna, apesar de atriz, era pessoa de pouca cultura e de educação rústica (para dizer o de menos). Wagner, por seu turno, além de sensibilíssimo artista, gênio de sua arte, era um sujeito sumamente culto. Interessava-se por tudo, por poesia, por filosofia, por política, por todas as artes etc.etc.etc. Em casa, no entanto... não tinha condições de sustentar a mais ligeira conversa que não fosse sobre trivialidades. O que, certamente, atraiu essas duas pessoas, de formações tão díspares, foi a beleza física de ambos, mas só isso. E esse fator, cá para nós, é insuficiente para manter um relacionamento minimamente estável.

Ademais, Minna já estava cansada de acompanhar o irresponsável marido em suas sucessivas fugas dos credores. O casal não tinha a mínima estabilidade financeira e não parava em lugar algum. Pelo contrário. Nas várias biografias de Wagner, suas constantes e recorrentes dívidas são uma rotina. E suas fugas dos credores também. Isso aconteceu em Dresden, em Riga (na Estônia), em Zurique, em Veneza e vai por aí afora. O compositor chegou, até, a ser preso, em Paris, em uma de suas passagens pela capital francesa, por não pagar o que devia. E não teve o mesmo destino, em outras localidades, por ter fugido antes. É verdade que tempos depois Wagner foi salvo dessa situação de eterno devedor, e sempre inadimplente, por alguém que não somente assumiu todos  seus débitos, mas que, de quebra, “presenteou-o” com uma régia pensão. Mas esta é outra história, que merece todo um capítulo (ou mais de um) a parte.


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