Friday, September 06, 2013

Doações compulsórias

Pedro J. Bondaczuk

A doação de órgãos para transplantes é um ato de generosidade, sobretudo de amor ao próximo e à vida. Traz benefícios óbvios aos que precisam e até satisfaz o ego de quem doa. É muito bom saber que, mesmo depois de mortos, alguma parte de nós permanecerá viva por mais algum tempo, ajudando alguém a sobreviver. E para nós, evidentemente, não fará nenhuma falta.

Contudo, esta deve ser fruto da manifestação livre e soberana da vontade de cada um. O Estado --- mera abstração, simples conceito --- não tem o direito de dispor sobre o nosso corpo. A doação, portanto, não pode ser compulsória, como prevê o projeto, aprovado no dia 17 passado pelo Senado, e que espera a sanção presidencial. E por inúmeras razões.

Embora periodicamente faltem órgãos, esse não é o principal problema enfrentado pelos centros de transplante do País --- em número bastante reduzido ainda --- conforme asseguram especialistas da área e com os quais concorda o ministro da Saúde, Carlos Albuquerque, opositor da doação compulsória.

Doadores existem, em quantidade até razoável. Faltam equipes especializadas para a retirada quando estes morrem, que implica em uma série de cuidados, tanto no que se refere ao momento da remoção, quanto à forma com que esta é feita e como, ainda, à sua conservação, etc.

É certo que o projeto estipula salvaguardas para evitar o tráfico de órgãos. Penaliza, por exemplo, a remoção ilegal (de mortos e vivos) e principalmente a venda, absolutamente proibida. Mas com lei ou sem ela, esses delitos sempre vão existir. O problema desse e de outros crimes não é a existência ou não de legislação, mas a fiscalização. Quem vai fiscalizar? Como?

A polêmica despertada em torno do assunto, no entanto, é salutar. É uma oportunidade para conscientizar as pessoas relutantes ou contrárias sobre a necessidade desse ato generoso e abnegado. E sequer há razões de ordem prática, moral ou religiosa que impeçam as doações. Muito pelo contrário.

É certo que o projeto abre a possibilidade para aqueles que por algum motivo --- por mais tolo que seja --- não concordem em doar coração, rins, fígado, pulmão, córneas ou seja que parte for do seu corpo (para minorar o sofrimento de um semelhante) de não o fazerem.

Prevê que tais pessoas façam constar em sua Cédula de Identidade ou Carteira Nacional de Habilitação, a expressão "não-doador". Contudo, isso cria um constrangimento de ordem moral para quem se dispuser a se valer do dispositivo legal. E outros de caráter prático.

Essas salvaguardas poderiam ter efeito num país de Primeiro Mundo, onde a população fosse esclarecida, ou pelo menos alfabetizada. Para a nossa realidade, em que parcela considerável dos brasileiros sequer atina com o que seja um transplante e onde há um contingente muito alto de analfabetos e "indocumentados", dificilmente sua "vontade" seria registrada. E muito menos respeitada...


(Artigo publicado no Correio Popular em 17 de abril de 1997).


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