Sunday, September 08, 2013

Ídolo nacional apesar de tudo

Pedro J. Bondaczuk

O desportista Leônidas da Silva, cujo centenário de nascimento se comemora neste mês de setembro de 2013 (nasceu no Rio de Janeiro em 6 de setembro de 1913), foi desses fenômenos raros no esporte, pelos títulos que conquistou e, principalmente, pela época em que essas conquistas ocorreram. O leitor talvez estranhe que este redator o trate de “desportista” e não de jogador de futebol, modalidade em que se consagrou. Isso, todavia, tem explicação (tudo tem).

Ocorre que, embora a maior parte de sua carreira tenha se desenvolvido nos gramados, do Brasil e do exterior, Leônidas brilhou, também, em outro esporte. Ademais, não se limitou a jogar bola, mas, depois que pendurou as chuteiras, se destacou em outros setores ligados ao futebol. Foi, por exemplo, “cartola”, tendo sido diretor do seu último clube, o São Paulo. E, por mais de vinte anos, foi bem-sucedido comentarista esportivo da Rádio Pan-Americana de São Paulo (atual Jovem Pan), tendo obtido sete troféus Roquete Pinto, prêmio máximo que então era atribuído, anualmente, aos melhores do ano à frente dos microfones. Era uma espécie de “Oscar” do rádio (e, posteriormente, também da televisão, onde Leônidas também atuou, no caso, na TV Record).

Por esses fatores, creio que não seja justo ou adequado nomeá-lo, “apenas”, como vitorioso jogador de futebol (o que, convenhamos, não seria nenhum demérito). Tratarei, no devido tempo, de cada uma dessas passagens de Leônidas fora dos gramados. Quanto ao outro esporte em que brilhou, este foi o basquete. Isso aconteceu em 1931. Nesse ano, nosso personagem, super atleta que foi, quando defendia o Bonsucesso, além de jogar futebol, fazia parte do quinteto titular do tradicional clube da zona da Leopoldina, no Rio de Janeiro. E não se limitou a compor o elenco. Foi campeão de basquete da cidade. Quando teve que optar, todavia, entre um esporte ou outro, optou, para a felicidade do futebol brasileiro, pelo chamado esporte das multidões.

Tornar-se ídolo, nos dias de hoje, não é tarefa tão complicada, quanto era naquela época, que muitos historiadores classificam, de forma até pitoresca, de “Pré-História”, desse esporte em que o Brasil se tornou pentacampeão mundial, com chances de conquistar o hexa em 2014. Muitos “cabeças de bagre” conquistam esse “status” sem maiores dificuldades, embora com técnica contestável. No tempo em que Leônidas da Silva começou a jogar bola, e em que se consagrou, tudo era diferente. Tudo era muito difícil, dificílimo. Não havia, por exemplo, nenhum método de preparação física, como há hoje.

A medicina esportiva estava atrasadíssima, na “Idade da Pedra lascada” e contusões simples, que hoje são curadas em questão de dias ou, no máximo, de semanas, não raro afastavam os atletas para sempre dos gramados. E o material esportivo, o que dizer dele? Era para lá de primitivo. Era tosco, ruim, péssimo. As bolas, por exemplo, eram de couro, costuradas e amarradas. Eram do tal “capotão”, pesadonas, que ficavam ainda muito mais pesadas quando encharcavam nos dias de chuva. Quanto aos campos de futebol...  eram verdadeiros pastos, irregulares, esburacados, com grama rala e ruim e mal sinalizados. Eram, sem exagero, infinitamente piores do que muitos existentes nas raras várzeas atuais. E há jogadores de hoje que ainda reclamam! Gostaria de vê-los atuando nesses arremedos de campos nos quais Leônidas da Silva fazia malabarismos com a bola, como se jogasse na Alienz Arena ou no Camp Nou, ou no Santiago Bernabeu, perfeitos e ideais tapetes de grama. Não dariam nem para o começo!

Ainda sobre as bolas, elemento essencial numa partida de futebol (óbvio), além de mal acabadas, eram caras e, por isso, raras. Os clubes tinham que zelar por elas, como por um tesouro, para não ficarem privados desse objeto tão “precioso” e imprescindível. E o que falar das chuteiras? Nem de longe lembravam as atuais, leves, sofisticadas e adequadas para todas as necessidades e preferências. Eram pesadas, apertadas, incômodas e, não raro, instáveis. As próprias regras eram um tanto diferentes. Não existiam os cartões amarelos e vermelhos. Os árbitros é que decidiam quando e como advertir os atletas faltosos por jogadas violentas, que existiam em profusão. E raramente puniam os infratores. Quem reclamasse, ouviria, invariavelmente: “Futebol é jogo para homem”.

Contusões eram freqüentes e muitos jogadores promissores tiveram as carreiras precocemente truncadas pela violência dos adversários. O futebol, minha gente, no tempo em que Leônidas da Silva despontou para o estrelato, não era nada fácil. Ademais, havia enorme preconceito racial. Era considerado esporte de elite, destinado, apenas, para rapazes de boa condição social e econômica, geralmente estudantes das mais caras escolas particulares do País. Jogadores negros eram raríssimos e, assim mesmo, atuando em clubes de menor expressão. Além do que, eram alvos preferenciais da violência dos adversários brancos e os árbitros raramente puniam, como deveriam, os infratores.

Tanto é verdadeira essa questão do racismo, que Leônidas da Silva foi um dos primeiros jogadores negros a vestir a camisa rubro-negra do Flamengo, clube mais popular e de maior torcida do País. E isso, em 1939!!! Mas o clube da Gávea não teve do que se arrepender por essa “ousadia”. Com a presença do craque, que então já estava consagrado por suas atuações na Seleção Brasileira em duas Copas do Mundo (em 1934 e 1938), foi campeão carioca daquele ano. Provavelmente o Flamengo abriu essa exceção por causa da fama desse jogador. Caso contrário...

Tornar-se ídolo, na época, mesmo sendo jogador branco, era façanha das mais improváveis. Imaginem sendo negro! Não havia uma imprensa esportiva como hoje, com todo este aparato tecnológico e humano que há. O rádio, por exemplo, teve as primeiras transmissões normais em 1922, no centenário da independência do Brasil. Apenas nove anos depois, em 18 de julho de 1931, uma partida de futebol seria transmitida, na íntegra, por esse veículo, que então recém começava a se popularizar. O autor desse feito foi Nicolau Tuma. A partida transmitida foi um jogo entre as seleções paulista e paranaense, disputado no Campo da Floresta, no bairro da Ponte Grande, em São Paulo. Para que o leitor tenha uma idéia da dificuldade enfrentada por esse locutor esportivo pioneiro, basta dizer que as camisas dos atletas não eram numeradas, como hoje. Era preciso fazer enorme malabarismo mental e visual para identificar os jogadores que faziam as jogadas narradas.


Se o rádio ainda engatinhava, imaginem a televisão. Era coisa que o brasileiro nem sonhava. Aliás, duvidava-se que seria possível criar, algum dia, aparelho capaz de transmitir, simultaneamente, imagens e sons. Mesmo os jornais dedicavam escassos espaços ao futebol e, assim mesmo, somente aos clássicos envolvendo grandes clubes. Todavia, a despeito de toda essa precariedade, Leônidas da Silva tornou-se ídolo nacional. Imaginem se jogasse hoje, com tudo facilitado, desde equipamento esportivo, aos estádios, preparação física, medicina esportiva e imprensa especializada! Não duvido nada que colocaria Lionel Messi no chinelo! Mas... a História não se faz com o “se”...

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