Réplica de classe
Pedro J. Bondaczuk
A imortalidade – não a
física, evidentemente, que nos é vedada, mas a como é compreendida
pelas pessoas lúcidas e inteligentes, ou seja, a do nome e das obras
que lhe sejam associadas – é a máxima aspiração dos indivíduos
produtivos e, sobretudo, criativos, mesmo que não admitam. Quase
ninguém admite. A minha, porém, confesso, é.
Fico aflito somente em pensar
que, poucos dias após a minha morte, o que fui, fiz e pensei pode
acabar esquecido até mesmo pelos meus descendentes mais diretos (já
nem digo os amigos e demais parentes). E que, ao cabo de escassos
anos (se não irrisórios meses ou até dias), não reste o menor
vestígio de que um dia amei, odiei, tive saudades, errei, acertei e,
em suma, passei pela Terra e vivi.
Essa imortalidade, todavia, é
muito caprichosa. Pessoas que foram especiais e deixaram obras
magníficas (não importa de que natureza), dignas de reverência e
de registro, foram “atropeladas” pelas circunstâncias e acabaram
esquecidas para sempre. E outras, que em toda a vida praticaram um
único ato que valeu a pena registrar (disseram algo de original,
fizeram alguma coisa de excepcional ou nem isso, ou seja, foram
apenas exóticas, quando não patéticas), tiveram seus nomes
inscritos, para sempre, na História e são citadas, geração após
geração (com seus feitos distorcidos e em geral aumentados, de uma
época para outra). A memória dos povos é assim: pífia, banal e
quase sempre injusta.
Por exemplo, alguém sabe quem
foi a pessoa que pela primeira vez inventou um alfabeto (qualquer
deles) e que desenvolveu uma forma, mesmo que rudimentar, de
registrar ideias por escrito, de maneira coerente e inteligível?
Claro que não!
Mas essa foi uma invenção
que revolucionou a História. Lançou as bases do que entendemos como
civilização. E quem teve a idéia de inventar o símbolo “zero”,
para “quantificar” o nada? Isso, para não indagar quem inventou
a roda, quem pela primeira vez aprendeu a produzir o fogo e quem teve
a intuição de lançar, antes de qualquer outro, sementes de plantas
à terra e teve paciência de esperar os resultados, criando, dessa
maneira, a agricultura.
Como se vê, a memória dos
povos nem sempre (ou quase nunca) é justa. Todavia, de malucos
empedernidos, de tiranos, de genocidas, de pilantras de toda a sorte,
as páginas da História estão abarrotadas. Estes é que deveriam
ser esquecidos para todo o sempre, mas não são. É verdade que
temos sábios e santos, artistas e artesãos que lograram obter esse
tipo de imortalidade. Mas a desproporção é imensa em relação aos
paranoicos, aos verdugos, aos guerreiros que semearam morte e terror
por onde passaram, aos corruptos, aos covardes etc.etc.etc.
Jorge Luiz Borges cita, no
livro “História da Eternidade”, de passagem, sem fornecer
detalhes que permitam exata identificação, um desses personagens
que lograram se tornar “imortais” em decorrência de um, um único
incidente, que poderia ser relevado e esquecido, como uma infinidade
de tantos outros, por sua banalidade, mas que ganhou relevância e
permanência, por causa de uma resposta supostamente inteligente,
perspicaz, irônica e, sobretudo, elegante, a uma ofensa que sofreu.
Trata-se de um certo “Doutor
Henderson”, sobrenome bastante comum em inglês (numa consulta ao
Google, este registrou, em fração de segundos, cerca de 700 mil
páginas em que é citado). Em nenhum lugar se menciona o que fez
(além de dar a mencionada resposta ao agravo que sofreu), qual sua
especialidade médica, quantos doentes curou, quantos não conseguiu
curar, quais foram seus contemporâneos célebres etc.
Ainda assim, não se tratou de
um Henderson qualquer. Este foi especial. A citação de Borges, a
que me referi, é a seguinte: “Numa discussão teológica ou
literária, lançaram um copo de vinho ao rosto de um cavalheiro. O
agredido não se alterou e disse ao ofensor: ‘Isto, senhor, é uma
digressão; aguardo seu argumento’. (O protagonista dessa réplica,
um tal doutor Henderson, faleceu em Oxford por volta de 1787, sem
deixar-nos nenhuma lembrança a não ser essas exatas palavras:
suficiente e bela imortalidade)”.
As referências que o
caracterizam são o ano e o local do seu falecimento. Esses pequenos
detalhes, porém, são suficientes para identificá-lo com razoável
precisão. Afinal, apesar desse sobrenome ser (como ressaltei)
bastante comum, não devem haver tantos Hendersons falecidos em 1787
e em Oxford, na Inglaterra. Se houver mais de um, já será enorme
coincidência.
Ademais, provavelmente sua
resposta nem foi da forma com que passou à História. Deve ter
sofrido cortes e acréscimos nesses dois séculos e 21 anos após
haver sido dada (afinal, “quem conta um conto...”). Alguém deve
ter testemunhado e registrado a altercação e o respectivo
contraponto, caso contrário não haveria a referência. Além disso,
nosso quase ilustre personagem contou com a sorte de encontrar um
escritor originalíssimo e perspicaz, como Jorge Luiz Borges, que em
alguma fonte (que o escritor argentino não revelou qual era),
encontrou essa referência e... a imortalizou.
E pronto! O tal do Doutor
Henderson deixou de ser um anônimo “ad aeternum”, para se tornar
relativa “celebridade”. É assim que funciona essa tal de
“imortalidade” que tanto buscamos: ao sabor apenas dos caprichos
do acaso e das circunstâncias. Como nos iludimos com o futuro!
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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