Ócio muito trabalhoso
Pedro J. Bondaczuk
A escrita é, sem dúvida, uma
das atividades mais nobres que existem. Requer, de quem queira
exercitá-la bem, uma série de aptidões, sem as quais não terá
desempenho sequer aceitável. O redator precisará, antes de tudo,
óbvio, “saber escrever”. Mais de um bilhão de pessoas, mundo
afora, não sabem, pois são analfabetas.
É indispensável, a quem
precise (ou queira) se expressar por escrito, que conheça as normas
essenciais do idioma em que se expressa. Assim, tem que conhecer a
grafia correta das palavras, além das regras gramaticais básicas da
sua língua. Mas, caso queira se aprofundar, mesmo que não se trate
de um escritor, será desejável que crie, desenvolva e consolide
estilo próprio de escrever.
Esse é o be-a-bá da escrita.
É o elementar, quer para o redator profissional (não importa em que
especialidade, se jornalista, advogado, juiz ou escriturário), quer
para as pessoas de cultura razoável se expressarem, sem passarem
vergonha, no dia a dia. Serve, por exemplo, para redigir um bilhete
sem erros à esposa, ou um e-mail para os amigos, ou uma mensagem no
facebook e em tantos outros sítios de relacionamentos da internet
etc.
De quem vive da escrita,
exigem-se outras aptidões, claro. Por exemplo, bom nível de
informação, cultura acima da média e, sobretudo, criatividade,
entre outras tantas características. Todavia, para quem não é
profissional, ou seja, não sobreviva de texto, escrever não se
constitui em necessidade. Dá para se sobreviver sem isso (bilhões
sobrevivem). Contudo, mesmo que não se exercite a redação para se
ganhar o pão nosso de cada dia, é desejável (se não fundamental)
esse conhecimento.
Escrever, porém, para quem
não tenha isso como obrigação profissional, convenhamos, é um
ócio, mesmo para escritores (a menos que tenham contrato com alguma
editora que contenha cláusula que os obrigue, por exemplo, a redigir
um livro a cada seis meses ou a cada ano).
Quando escrevo, por exemplo,
um romance (ou conto, novela, poema, ensaio etc.) ninguém me obriga
a fazê-lo (a menos que haja a obrigação contratual já referida).
A iniciativa é exclusivamente minha. Se não a tomar, ninguém irá
reclamar, cobrar ou me acionar judicialmente. A rigor, portanto, é
um ócio.
Não me refiro, óbvio, à
importância da literatura e nem seria irresponsável de fazê-lo,
pois considero-a importantíssima, até por coerência, porque também
sou escritor. Não iria, pois, desmerecer o que faço. Tecnicamente,
todavia, trata-se de ócio.
Isso não quer dizer, reitero,
que não seja importante. E nem que seja algo fácil, que qualquer
imbecil, que não tenha o que dizer e nada acrescentar ao mundo, faça
ou possa fazer. Há ócio e ócio e este, como ressalta o poeta
alemão Johann Wolfgang von Goethe “é muito trabalhoso”. E como!
Já imaginaram o mundo sem
escritores?! Consequentemente, sem livros? A civilização, tal como
a conhecemos hoje, se extinguiria. A humanidade, em pouquíssimo
tempo, talvez no espaço de uma única geração, retroagiria à
barbárie. Seria o caos.
Até Johann Guttenberg
descobrir os tipos fixos, o que permitiu a reprodução impressa de
textos em quantidades virtualmente infinitas, o livro era um objeto
raríssimo. As edições restringiam-se a uns poucos e míseros
exemplares que chegavam às mãos de raros privilegiados. Dependiam
de copistas, em geral monges, para serem produzidos. O processo de
produção era lento e nem um pouco seguro.
Os originais eram copiados
exemplar por exemplar e raramente as cópias eram rigorosamente fiéis
aos originais. A quantidade dos que sabiam ler, por seu turno, era
ínfima, irrisória, pequeníssima. Os escritores, igualmente, eram
para lá de escassos.
As ideias de fraternidade,
solidariedade e justiça, entre outras tantas que fundamentam as
sociedades contemporâneas, portanto, não circulavam, ensejando,
além de pavorosas tiranias, a superstição, o dogmatismo (e seu
“filho predileto”, o fanatismo) e a ignorância. Não por acaso,
o progresso dos povos (material, cultural, artístico, mas,
sobretudo, espiritual) se materializou somente após ampla difusão
do livro, ensejada pela invenção de Guttenberg.
Escrever, portanto, (salvo as
exceções apontadas), não deixa (pelo menos tecnicamente) de ser
mesmo um ócio. Ninguém, mas ninguém mesmo, salvo a sua
consciência, obriga o escritor a fazê-lo. Isso, todavia, em vez de
desmerecê-lo, apenas engrandece-o e torna magnífica sua ação.
É um ato de suprema
generosidade em relação à espécie. É uma generosíssima partilha
de informações, sentimentos, ideias, concepções etc. com a
humanidade. É algo trabalhoso, sim, como ressaltou Goethe. Mas é,
sobretudo, o tal do “otio cum dignitate” (ócio com dignidade)
apregoado pelo romano Cícero.
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