Monday, May 15, 2017

Composto de dualidades



Pedro J. Bondaczuk



O “Bruxo do Cosme Velho”, Machado de Assis, colocou, certa feita, esta declaração na boca de um de seus personagens: “O homem é um composto de dualidades. A principal delas é a alma e o corpo; e o próprio corpo tem um par de braços, outro de pernas, os olhos são dois, as orelhas duas, as ventas duas. Finalmente, não há casamento sem duas pessoas”.

Como metáfora, perfeito! Mas nem tudo é duplo no homem (tomado, aqui, genericamente, como espécie, envolvendo, portanto, também a mulher). Alguns órgãos vitais, por exemplo, como o coração, o estômago e o fígado, são únicos. E, principalmente, o centro de comando de tudo isso: o cérebro.

Além disso, nem todo o casamento tem só duas pessoas, como Machado escreveu. Nove meses após (quando não muito antes) surge, via de regra, uma terceira, como conseqüência dessa união. E, caso esse enlace não seja satisfatório para um dos dois (ou para ambos), pode surgir uma outra figura, completando o indesejável “triângulo”, que é a do ou da amante. Mas... deixa pra lá!

A dualidade maior, neste ser tão complexo, ambíguo e contraditório, é composta por instinto e razão. O primeiro, faz de nós um animal como outro qualquer. Temos necessidade vital de alimentos, abrigo e vestuário (este último, até há bom tempo, era dispensável e hoje é essencial, apenas por causa das mudanças de hábito do “Homo Sapiens”).

A satisfação dessas necessidades fundamentais é instintiva. Mesmo que não fôssemos racionais, agiríamos no sentido de buscar comida para nos sustentar, casa para repousar nosso corpo e roupa para nos aquecer e manter estável o que pode ser chamado de “calor vital”. Ou seja, a temperatura interna de 35,5 graus centígrados, nem mais e nem menos. Trata-se, pois, do instinto mor na escala da vida: o da sobrevivência.

Já a razão nos distingue de qualquer outro ser vivo. Talvez não sejamos os únicos que têm noção da própria existência e “entendem” o que são e onde estão (é possível que outros bichos tenham essa consciência, mesmo que em grau mínimo, o que é impossível de se comprovar ou desmentir, com absoluta segurança). Contudo, só nós podemos alterar condições adversas do meio ambiente e torná-las favoráveis aos nossos propósitos e necessidades.

Não dependemos mais, como nossos primitivos ancestrais, da caça, da pesca e da coleta de frutos silvestres para nos alimentar. Através da razão, aprendemos a prover nossas próprias fontes de alimentos, tornando-as perenes (quase inesgotáveis), mediante a agricultura, a pecuária e a piscicultura. É o caso típico, portanto, da razão auxiliando o instinto.

Ademais, aprendemos como conservar e estocar a comida. Industrializamo-la, aumentando seu aproveitamento e reduzindo seu desperdício. Tornamo-la mais saborosa, inventando a culinária. E não foi só em relação à alimentação que a razão auxiliou o instinto.

Aprendemos a construir os próprios abrigos, mais seguros, salubres e confortáveis. O fogo, por sua vez, deixou de ser mistério. Sabemos agora como “criá-lo”, na hora que nos aprouver. E para tornar o processo mais prático, “industrializamo-lo”, inventando o fósforo e, mais recentemente, os isqueiros a querosene e a gás. Quanto às vestimentas, não só aprendemos a fazê-las mais confortáveis, com um tipo para cada clima, como as sofisticamos e tornamos bonitas, mediante a moda, numa instintiva imitação das plumagens das aves.

Como se vê, é, de novo, a razão auxiliando o instinto. Outro ato instintivo, de que a natureza nos dotou (como ademais a todos os seres vivos), é o da conservação da espécie, mediante a reprodução. Nossos primitivos ancestrais buscavam, instintivamente, parceiros do sexo oposto para copular.

Provavelmente não sabiam da importância e do significado dessa conjunção carnal, embora o ato fosse prazeroso para ambos. Surpreendiam-se quando, nove meses após, nascia uma criatura que em tudo se parecia com eles. Embora seu tantinho ínfimo de inteligência fizesse com que desconfiassem, não tinham noção exata (ou pelo menos certeza) de que o nascimento do novo ser era conseqüência da cópula.

Com o tempo, porém, o ser humano também “civilizou” esse instinto. Passou a denominar aquela irresistível atração que sentia por espécimes da própria espécie, mas de sexo oposto, de “amor”. Teceu lendas, histórias e enredos mil em torno desse sentimento que lhe tirava a tranquilidade e o juízo enquanto não correspondido.

Desenvolveu a linguagem. Aprendeu a identificar as distintas emoções. Nomeou-as, uma a uma, definindo suas características Criou metáforas, inspiradas na natureza, para tornar belo e sublime um instinto sumamente banal entre todos os seres vivos. Nasceram, assim, as artes e, sobretudo, a poesia.

É, Machado, você tem, mesmo, razão. O homem, de fato, é composto de dualidades: macho-fêmea, bem e mal, razão e instinto etc. Daí oscilar, em seu comportamento, a despeito do “verniz” civilizatório que tão arrogantemente ostenta, mesmo em pleno século XXI do Terceiro Milênio da Era Cristã, entre a fera bronca (que de fato é) e o semideus (que também não deixa de ser!).




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