Composto de dualidades
Pedro J. Bondaczuk
O “Bruxo do Cosme Velho”,
Machado de Assis, colocou, certa feita, esta declaração na boca de
um de seus personagens: “O homem é um composto de dualidades. A
principal delas é a alma e o corpo; e o próprio corpo tem um par de
braços, outro de pernas, os olhos são dois, as orelhas duas, as
ventas duas. Finalmente, não há casamento sem duas pessoas”.
Como metáfora, perfeito! Mas
nem tudo é duplo no homem (tomado, aqui, genericamente, como
espécie, envolvendo, portanto, também a mulher). Alguns órgãos
vitais, por exemplo, como o coração, o estômago e o fígado, são
únicos. E, principalmente, o centro de comando de tudo isso: o
cérebro.
Além disso, nem todo o
casamento tem só duas pessoas, como Machado escreveu. Nove meses
após (quando não muito antes) surge, via de regra, uma terceira,
como conseqüência dessa união. E, caso esse enlace não seja
satisfatório para um dos dois (ou para ambos), pode surgir uma outra
figura, completando o indesejável “triângulo”, que é a do ou
da amante. Mas... deixa pra lá!
A dualidade maior, neste ser
tão complexo, ambíguo e contraditório, é composta por instinto e
razão. O primeiro, faz de nós um animal como outro qualquer. Temos
necessidade vital de alimentos, abrigo e vestuário (este último,
até há bom tempo, era dispensável e hoje é essencial, apenas por
causa das mudanças de hábito do “Homo Sapiens”).
A satisfação dessas
necessidades fundamentais é instintiva. Mesmo que não fôssemos
racionais, agiríamos no sentido de buscar comida para nos sustentar,
casa para repousar nosso corpo e roupa para nos aquecer e manter
estável o que pode ser chamado de “calor vital”. Ou seja, a
temperatura interna de 35,5 graus centígrados, nem mais e nem menos.
Trata-se, pois, do instinto mor na escala da vida: o da
sobrevivência.
Já a razão nos distingue de
qualquer outro ser vivo. Talvez não sejamos os únicos que têm
noção da própria existência e “entendem” o que são e onde
estão (é possível que outros bichos tenham essa consciência,
mesmo que em grau mínimo, o que é impossível de se comprovar ou
desmentir, com absoluta segurança). Contudo, só nós podemos
alterar condições adversas do meio ambiente e torná-las favoráveis
aos nossos propósitos e necessidades.
Não dependemos mais, como
nossos primitivos ancestrais, da caça, da pesca e da coleta de
frutos silvestres para nos alimentar. Através da razão, aprendemos
a prover nossas próprias fontes de alimentos, tornando-as perenes
(quase inesgotáveis), mediante a agricultura, a pecuária e a
piscicultura. É o caso típico, portanto, da razão auxiliando o
instinto.
Ademais, aprendemos como
conservar e estocar a comida. Industrializamo-la, aumentando seu
aproveitamento e reduzindo seu desperdício. Tornamo-la mais
saborosa, inventando a culinária. E não foi só em relação à
alimentação que a razão auxiliou o instinto.
Aprendemos a construir os
próprios abrigos, mais seguros, salubres e confortáveis. O fogo,
por sua vez, deixou de ser mistério. Sabemos agora como “criá-lo”,
na hora que nos aprouver. E para tornar o processo mais prático,
“industrializamo-lo”, inventando o fósforo e, mais recentemente,
os isqueiros a querosene e a gás. Quanto às vestimentas, não só
aprendemos a fazê-las mais confortáveis, com um tipo para cada
clima, como as sofisticamos e tornamos bonitas, mediante a moda, numa
instintiva imitação das plumagens das aves.
Como se vê, é, de novo, a
razão auxiliando o instinto. Outro ato instintivo, de que a natureza
nos dotou (como ademais a todos os seres vivos), é o da conservação
da espécie, mediante a reprodução. Nossos primitivos ancestrais
buscavam, instintivamente, parceiros do sexo oposto para copular.
Provavelmente não sabiam da
importância e do significado dessa conjunção carnal, embora o ato
fosse prazeroso para ambos. Surpreendiam-se quando, nove meses após,
nascia uma criatura que em tudo se parecia com eles. Embora seu
tantinho ínfimo de inteligência fizesse com que desconfiassem, não
tinham noção exata (ou pelo menos certeza) de que o nascimento do
novo ser era conseqüência da cópula.
Com o tempo, porém, o ser
humano também “civilizou” esse instinto. Passou a denominar
aquela irresistível atração que sentia por espécimes da própria
espécie, mas de sexo oposto, de “amor”. Teceu lendas, histórias
e enredos mil em torno desse sentimento que lhe tirava a
tranquilidade e o juízo enquanto não correspondido.
Desenvolveu a linguagem.
Aprendeu a identificar as distintas emoções. Nomeou-as, uma a uma,
definindo suas características Criou metáforas, inspiradas na
natureza, para tornar belo e sublime um instinto sumamente banal
entre todos os seres vivos. Nasceram, assim, as artes e, sobretudo, a
poesia.
É, Machado, você tem, mesmo,
razão. O homem, de fato, é composto de dualidades: macho-fêmea,
bem e mal, razão e instinto etc. Daí oscilar, em seu comportamento,
a despeito do “verniz” civilizatório que tão arrogantemente
ostenta, mesmo em pleno século XXI do Terceiro Milênio da Era
Cristã, entre a fera bronca (que de fato é) e o semideus (que
também não deixa de ser!).
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