Wednesday, May 17, 2017

Insigne alquimista


Pedro J. Bondaczuk


O tempo é implacável e não perdoa ninguém. Desgasta-nos, nos exaure e nos transforma. Por isso, devemos viver cada fase da nossa vida, principalmente a da infância, com máxima intensidade e vigor.

É certo que nem sempre os anos nos tornam piores, pelo menos do ponto de vista mental ou moral. Isso vai depender de nós, da nossa postura face ao mundo. Tanto podem nos tornar humildes, conhecedores das nossas reais possibilidades, sem manias de grandeza e sem ilusões, quanto fazer com que nos tornemos amargos e descrentes.

Está em nossas mãos fazer dos nossos últimos dias ou um período de satisfações e felicidade, ou uma fase de amarguras e frustrações. Qual o tipo de semente que estamos cultivando em nossos corações? O da humildade, ou o do cinismo e do ceticismo? Pois é, o tempo transforma, profundamente, tudo e todos e, principalmente, os que escolhem caminhos errados e desperdiçam estupidamente suas vidas.

O arrogante, por exemplo, ao cabo dos anos, faz-se humilde, ao se dar conta que não é tão importante quanto julgava. O mundo se encarrega de derrubar sua crista. O idealista torna-se cínico quando percebe quão pífio e vazio era seu ideal. Pode-se enganar os outros, mas jamais a nós mesmos. E o crente, que abraçou crença errada, passa a descrer de tudo e de todos e se transforma em empedernido céptico.

Há crenças que são nitidamente meras superstições. Daí a importância de valores adequados e metas factíveis para nossas vidas. Compete-nos valorizar adequadamente o que de fato é importante e descartar o inócuo, o fútil e o desnecessário. A atitude mais inteligente é sermos humildes sem nos humilharmos; idealistas, mas com os pés no chão e crentes no racional e transcendental.

O homem, sem que o perceba ou se dê conta, morre a cada dia para em seguida renascer. Acusam-me não raro de ser repetitivo a esse propósito. Dizem que escrevo sempre as mesmas coisas a propósito do tempo e quase com as mesmíssimas palavras. Faço e farei inúmeras vezes isso de propósito. Afinal, o que é a vida (minha e dos outros) se não monótona variação em torno do mesmo tema?

Todavia, se atentarmos bem, veremos que não é tão mitológico assim o mito da fênix, aquela ave egípcia que renasceria de suas próprias cinzas. A cada dia, somos os mesmos e no entanto somos um outro. É como minhas reflexões sobre o tempo: parecem as mesmas, no entanto são bastante diversas.

Quanto ao nosso renascimento diário, enfatizamos que todas as células do organismo, seja de que tecido forem, se "autocopiam", através da reprodução, passando para as sucessoras todas as informações de que dispunham. A cada manhã, portanto, somos pessoas renovadas, inclusive do ponto de vista físico. Em termos mentais, nem se diga.

Mudamos a cada instante. E infeliz daquele que não muda nunca, que se aferra a dogmas, a comportamentos superados pelo tempo, a maneiras arcaicas de pensar e de agir. Ninguém, todavia, "renasce" das próprias cinzas com maior intensidade e força do que o artista e, mais ainda, do que o poeta. Por isso, ele é tão especial e mágico.

Somos, todos, seres múltiplos, mutantes, diferentes hoje do que éramos ontem, e não somente no aspecto físico, reitero, dado o envelhecimento, mas, sobretudo, no plano mental. De cada pessoa com que nos relacionamos, absorvemos alguma coisa: idéias, hábitos, comportamentos, não importa o quê. E quanto maior for o nosso círculo de relacionamentos, mais mudamos, mais diferentes nos tornamos, sem que sequer nos apercebamos dessas mudanças.

Por falar em poeta, este tem o condão de, com o seu talento, transformar a coisa mais trivial e o tema mais sem sabor, em obras-primas de encantamento e beleza. Faz com que reles pedras comuns, que atravancam nosso caminho, se tornem diamantes preciosos, jóias raras, enormes pepitas de ouro.

É um mago que tem o poder de “reinventar a vida” com a sua sensibilidade e sua capacidade de enxergar beleza onde os outros não a vêem, nos induzindo a sonhar e nos indicando, com delicadeza, a rota de um paraíso de luz.

Um dia, tudo e todos haverão de se transformar de vez. É a lei da natureza. É a ação desse que foi denominado por Machado de Assis (no conto “Eterno”) de “insigne alquimista”. E o Bruxo do Cosme Velho justifica porque considera o tempo assim: “Dá-se-lhe um punhado de lodo, ele o restitui em diamantes, quando menos, em cascalhos”.

É verdade que essa transformação não pára por aí. O “insigne alquimista” toma em suas mãos os diamantes que criou e, a despeito da sua dureza, os reduz, um dia, a pó. Faz, claro, a mesmíssima coisa, e com maior facilidade ainda, com o cascalho.

Um dia, todos passaremos por essa transformação definitiva, quando voltarmos ao solo de que fomos forjados. Mas quando esse momento chegar, quando o “insigne alquimista” voltar a nos transformar, que estejamos com o coração sossegado, cientes de que fomos úteis, deixamos obras, semeamos idéias e valores que um dia haverão de brotar e se transformar em frutos, quando estivermos dispersos nos campos, águas e ar e não formos mais que lembranças.

Fernando Pessoa escreve, no poema “Sossega coração”:

Sossega, coração, contudo! Dorme!
O sossego não quer razão nem causa.
Quer só a noite plácida e enorme,
a grande, universal, silente pausa
antes que tudo em tudo se transforme”.


Por isso, “sossega coração preocupado”!!!


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