Fera saciada
Pedro J. Bondaczuk
A humanidade, possivelmente,
está à beira de uma catástrofe de proporções imprevisíveis e
parece que ninguém vem se dando conta de tamanho perigo. E a ameaça
não vem do espaço. Está aqui mesmo, na Terra, se desenhando
sinistramente no horizonte, sem que se tomem as mínimas
providências para se evitar o pior.
Não me refiro, como
destaquei, a nenhuma colisão de cometa, ou de meteorito, com o
Planeta, o que também é possível, mas não tão provável. Também
não se trata, por exemplo, de súbita e simultânea atividade
vulcânica, de todos os milhares de vulcões espalhados mundo afora,
o que, se ocorresse, mataria milhões e milhões de pessoas sufocadas
por gases e incineradas pelo calor e provocaria nova era glacial, já
que as cinzas dessas magníficas fornalhas naturais impediriam que a
luz do sol chegasse ao solo por anos e mais anos.
Todos esses riscos são
possíveis, mas pelo menos não são iminentes. A catástrofe
potencial que pressinto e temo (aliás, essa idéia me apavora)
refere-se à produção de alimentos, cada vez menor, em virtude dos
caprichos climáticos (secas devastadoras em algumas regiões
produtoras e enchentes anormais em outras). Isso mesmo! O perigo que
está no ar, e nos ameaça a todos, é o de uma fome mundial como
nunca antes se viu.
Não se trata de ressuscitar
as previsões, feitas no século XIX, pelo britânico Thomas Robert
Malthus, ridicularizadas pela maioria dos economistas, políticos e
administradores, mas sempre lógicas. Para os que não se lembram do
que se trata, refresco a memória dos esquecidos. Esse sacerdote
anglicano lembrou, em memorável e citadíssimo ensaio, que, enquanto
a produção de alimentos no mundo cresce em progressão aritmética,
a população do Planeta aumenta em progressão geométrica.
Não é necessário ser nenhum
gênio para concluir que, em dado momento dessa trajetória, faltará
comida para todos. Seus críticos interpretaram que Malthus previa
essa catástrofe para o seu tempo ou para os anos vindouros. Todavia,
ele não estipulou prazo para que isso ocorresse. Tanto poderia
acontecer em anos, quanto em séculos ou até milênios. Mas a lógica
inflexível e matemática é uma só. E é facílimo de concluir qual
é.
Tenho, agora, em mãos, a
revista “IstoÉ”, de nº 2014, de 11 de junho de 2008 e o
editorial dessa publicação, redigido pelo seu então Diretor
Editorial, Carlos José Marques (não sei se ele ainda é), começa
assim: “A fome no mundo chegou a níveis críticos”. Pois é, não
se trata mais de concordar ou discordar de Malthus, mas de constatar
um fato. E o ilustre jornalista não é nenhum catastrofista ou
alguém ávido por sensacionalismo. Baseou seu texto em números, em
dados concretos, no caso, as conclusões do Fundo para a Alimentação
e Agricultura das Nações Unidas (FAO) na conferência que promoveu
em Roma na primeira semana de junho de 2008.
O alerta foi feito a quem de
direito. Ou seja, a autoridades de 180 países, presentes ao
encontro. Estas, no entanto, em vez de apontarem soluções práticas
e emergenciais, por mínimas que fossem, perderam precioso tempo
discutindo, apenas, aspectos políticos da questão da escassez: o
uso de alimentos como arma para constranger governos não-afinados
com os interesses das potências; o embargo a Cuba; o protecionismo
comercial dos países ricos e outras tantas picuinhas.
O documento final da reunião
adverte que “se algo não for feito urgentemente o aumento de
preços e a escassez de produtos vão se alastrar de uma forma
descontrolada”. Já estão se alastrando. É verdade que o Brasil
(bendito Brasil!) acabara de emplacar uma safra agrícola recorde.
Mas vários e vários países produtores colheram metade ou menos do
que colhem usualmente. Vai daí...
Vejam em que enrascada a
humanidade está metida (e a maioria nem se dá conta disso). Um
relatório da mesma FAO, divulgado em 2004, dava conta que 75% das
espécies vegetais utilizadas na alimentação humana já se
perderam, irremediavelmente. Ou seja, estão extintas. Ressalta que
apenas três tipos de sementes (arroz, trigo e milho) respondem por
dois terços da energia dietética consumida pelo mundo.
E tem mais. A FAO constatou
que em vinte anos, o setor agrícola e de pesca despencou de 22% para
12%, ou seja, quase à metade. E a população, enquanto isso... Nos
países pobres, eufemisticamente chamados de “em desenvolvimento”,
essa queda foi ainda mais abrupta. Precipitou-se dos 30% para 15%!
Sabem o que mais a FAO
informou? Que na oportunidade, 41% das terras do Planeta já eram
desertos ou estavam em acelerado processo de desertificação. A cada
ano, desaparecem 40 mil quilômetros de florestas tropicais, que se
transformam em cinza e carvão. Nesse ritmo (e na verdade a
devastação está aumentando e não diminuindo), até 2028, pelo
menos 15% da biodiversidade do Planeta terá desaparecido.
Enquanto isso, a ganância, o
egoísmo, a ambição desmedida e a burrice campeiam. Relatório do
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, também de 2004,
informava, naquela oportunidade, que o patrimônio de apenas 358
pessoas era maior que a renda anual de 45% da população da Terra
(que então era de 6,7 bilhões de habitantes e que hoje é de 7,6
bilhões).
Em treze anos, essa absurda
concentração de recursos, não tenham dúvidas, aumentou de forma
ainda mais escandalosa. As 200 maiores corporações, que
representavam, então, um terço das atividades econômicas mundiais,
empregavam, na oportunidade, somente 0,75% (menos de 1%, portanto) da
mão de obra disponível no Planeta. Hoje, esse número de empregos é
muito menor.
Uma das coisas que nunca
consegui entender, desde criança, é o fato de haver tantas pessoas
famintas, sem sequer um pedaço de pão duro e amanhecido para tapear
a fome, em um mundo que não faz muito ostentava tanta abundância. E
num período de escassez mundial, quem o leitor acha que será
penalizado e condenado a morrer de inanição? O rico e poderoso?
Quem pensar assim é o ingênuo dos ingênuos.
Enquanto houver esse tipo de
contradição, jamais poderemos considerar o homem como “civilizado”,
a despeito dos seus avanços nos mais diversos campos do
conhecimento, como os da ciência, tecnologia, artes, filosofia etc.
O escritor russo Máximo Gorki, no conto “O avô e o netinho”, dá
a sua explicação para esse comportamento egoísta e maldoso que
ainda impera mundo afora. Colocou, na boca de um personagem, esta
dura constatação: “O homem de barriga cheia é uma fera e nunca
tem pena do que está faminto. O farto e o apenas saciado são
inimigos – sempre um é uma felpa no olho do outro, por isso nem
um, nem o outro pode sentir piedade pelo que é seu inimigo”.
Infelizmente, o que ainda se
vê no mundo (e que se teme que venha a piorar muitíssimo), é o
homem como inimigo do homem, em vez de seu aliado para o bem comum.
Ainda assim, conservo, contra todas as evidências, uma pontinha de
otimismo (sempre fui incorrigível otimista). Mas esta torna-se
crescentemente menor em vista do que constato, leio, vejo e ouço a
respeito dessa iminente catástrofe, sem que ninguém mova uma palha
sequer para evitar. Afinal, otimismo não é e nem deve ser sinônimo
de alienação.
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