Realidade ou ficção?
Pedro
J. Bondaczuk
A disciplina chamada de
“História” reflete – e já nem digo com exatidão, mas com mínima aproximação – o
que de fato aconteceu em algum lugar específico e, mais amplamente, no mundo
todo em algum tempo ou no tempo todo? Quanto ela tem de verdade e quanto de
fantasia, de suposição, de pura imaginação do historiador? Da minha parte
estimo que no máximo 1% do relatado é verídico e que 99% não passa de pura
ficção, mesmo que aparente verossimilhança. E olhem que posso estar sendo
demasiado otimista. Não por acaso a mesma palavra designa a disciplina, o
supostamente relato fiel de acontecimentos e a ficção criada pela fértil
imaginação de romancistas, contistas, novelistas... enfim, de escritores de
ficção. Houve tentativa dos gramáticos de diferenciá-las, criando, para
designar a segunda, a palavra “estória”, com a letra “e” em vez do “h” na
frente. Todavia... não colou.
Destaco que sempre que
trago o tema à baila sou contestado, e não raro sem argumentos (pelo contrário,
argumentos sólidos e inteligentes, eles sim, são raridades), mas com meras
ofensas, muitas vezes chulices absurdas e abomináveis, que nunca levam a nada,
a lugar algum, a não ser causar irritação e desídia, tentando realçar, na maioria dos casos, minha
presumível ignorância. A maioria das pessoas é incapaz de abrir mão de suas
convicções, opiniões que sustentam a ferro e fogo, mesmo que sejam
ostensivamente equivocadas e até ridículas. Com isso, perdem preciosa
oportunidade de se esclarecer e de aprender o que realmente valha a pena.
O que se denomina,
pomposamente, de “História da Humanidade”, ou de “História da Civilização” ou
de qualquer outro nome correspondente “vende”, mesmo, o que anuncia? Ora, ora,
ora... Se hoje, com todo o aparato tecnológico ao nosso dispor, se com a
infinidade de meios de comunicação que contamos, se com a fartura de notícias,
de várias partes do mundo a que temos acesso, é rigorosamente impossível de
saber TUDO o que se passa no mundo em um único dia (e até mesmo em uma única
hora), imaginem como era, digamos, na Grécia Antiga, para não recuarmos muito!
E o que dizer do tempo anterior à invenção da escrita? Afinal, milênios antes
dessa genial criação (e é impossível de se saber quantos) havia povos, cidades,
países, guerras, invenções, personagens de todos os tipos e jamais iremos saber
quantos ou quais eram. Só podemos “imaginá-los”. Isso sem falar nas
dificuldades de locomoção, quando os meios mais velozes de transporte eram, até
pelo menos o século XVI, os cavalos.
“Bem” – arguirá aquele
leitor sequioso por desnudar publicamente minha (suposta) macro-ignorância –
“você está sugerindo que a História é absolutamente inútil, por não refletir o
que aconteceu?”. Não, amigo, não diria tanto. Até porque, desde que me tomei
consciência como gente, ela sempre foi minha disciplina favorita. E por gostar
tanto dela foi que me propus a me preparar para ser um escritor. Mesmo os
supostos fatos reais que ela narra sendo, na verdade, na maior parte (quando
não na totalidade) fictícios, meras versões dos narradores, eles têm o condão
de nos induzir à reflexão. E pensar, óbvio, sempre foi, é e será saudável e
indispensável. Afinal, foi para isso que a natureza nos dotou da nobre
capacidade de raciocínio. O que contesto é tomarmos a História ao pé da letra,
como relato fiel de fatos reais e incontestáveis, o que a própria lógica indica
ostensivamente que eles não são.
Napoleão Bonaparte, que
no seu auge conquistou, a poder de armas, praticamente toda a Europa, antes de
ser vencido em Waterloo, quando exilado na remota ilha de Santa Helena, no
Atlântico, refletiu sobre o que viveu e registrou em suas memórias, pouquíssimo
citadas hoje em dia por motivos óbvios (afinal, “aos perdedores as batatas”, é
a grande realidade da vida). Num certo trecho de suas anotações, o Grande Corso
observou: “Essa verdade histórica, tão implorada, à qual todos se apressam a
apelar, na maioria das vezes não passa de uma palavra: ela é impossível no
próprio momento dos acontecimentos, no calor das paixões cruzadas; e se, mais
tarde, nos pomos de acordo, é porque para os interessados, os contraditores não
existem mais. Mas o que é então essa verdade histórica a maior parte das vezes?
Uma fábula combinada...”
O antropólogo,
professor e filósofo belga Claude Levy-Strauss – que levou suas luzes à
Universidade de São Paulo, onde lecionou – disse a mesma coisa, posto que com
outras palavras. Escreveu, em “O pensamento selvagem”: “Assim como se diz de
certas carreiras, a história leva a tudo, mas contanto que se saia dela”. Ou
seja, é válida e útil, como destaquei. Todavia... sem tomá-la ao pé da letra,
como expressão da verdade, como relato fiel do que algum dia teria acontecido
em algum lugar. Este é o senso crítico que tem que nos nortear, sem que
formemos dogmas inquestionáveis aos quais nos aferremos fanaticamente, que
apenas retardam, quando não impedem, nossa evolução mental e intelectual.
Diz-se, amiúde, que a “História é a mestra da vida”. Eu não diria tanto. Diria
que a vida é a única mestra à qual devemos nos curvar e aprender com ela.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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