Pó levantado e pó caído
Pedro
J. Bondaczuk
O que mais impressiona
nos “Sermões” do Padre Antonio Vieira – além das ricas mensagens espirituais
que transmitia e da forma competente e original que utilizava para tal – era o
conhecimento que mostrava ter da natureza humana. O homem, apesar da empáfia,
arrogância e prepotência dos “poderosos” e da hipocrisia dos que vivem apenas
por viver, sem perspectivas e nem serventia nem para si mesmos (a imensa
maioria), não passa de um animal como os demais, embora muitos se considerassem
e se considerem deuses. É mortal e efêmero. E, salvo interferência do acaso,
passa pelo tempo sem sequer deixar vestígios de que um dia existiu. Veio do
nada, à sua revelia, e ao nada retornará, sem poder fazer nada para evitar.
Vieira foi direto na
veia ao afirmar, em certo trecho de um de seus mais célebres sermões (o da
“Sexta-feira da Quaresma”): “Distinguimo-nos os vivos dos mortos, assim como se
distingue o pó do pó. Os vivos são pó levantado, os mortos são pó caído: os
vivos são pó que anda, os mortos são pó que jaz. Estão estas praças no verão
cobertas de pó; dá um pé-de-vento, levanta-se o pó no ar, e que faz? O que
fazem os vivos, e muito vivos. Não aquieta o pó, nem pode estar quedo; anda,
corre, voa, entra por esta rua, sai por aquela; já vai adiante, já torna atrás;
tudo enche, tudo cobre, tudo envolve, tudo perturba, tudo cega, tudo penetra,
em tudo e por tudo se mete, sem aquietar, sem sossegar um momento, enquanto o
vento dura”.
E prossegue em sua
sábia e realista comparação: “Acalmou o vento, cai o pó, e onde o vento parou,
ali fica, ou dentro de casa, ou na rua, ou em cima de um telhado, ou no mar, ou
no rio, ou no monte, ou na campanha. Não é assim? Assim é. E que pó, e que
vento é este? O pó somos nós: Quia pulveses; o vento é a nossa vida: Quia
ventus est vita mea. Deu o vento, levantou-se o pó; parou o vento, caiu. Deu o
vento, eis o pó levantado: estes são os vivos. Parou o vento, eis o pó caído:
estes são os mortos. Os vivos pó, os mortos pó; os vivos pó levantado; os
mortos pó caído; os vivos pó com vento, e por isso vãos; os mortos pó sem
vento, e por isso sem vaidade. Esta é a destinação e não há outra”. E
porventura, há?! Doa o quanto doer à nossa vaidade, à nossa empáfia e à nossa
presunção: não passamos de pó, vivos ou mortos.
Destaque-se que este
sermão específico foi proferido para os poderosos do seu tempo, ocasião em que
Vieira era o capelão da Capela Real em Lisboa. Foi dirigido, portanto, ao rei e
à sua corte: os nobres, os barões, os condes, os viscondes, portanto, aos
detentores do poder. O pregador lembrou-lhes que, no essencial, eles eram
absolutamente iguais aos mais miseráveis dos miseráveis, aos despossuídos, aos
que não tinham presente e nem futuro. Enfatizou-lhes que eram pó, como outro
ser humano qualquer. Com o tempo, a despeito de todo o poder temporal que
ostentavam, seriam esquecidos em um milênio ou muito menos, como tantos outros
o foram, são e serão. Isso, se a espécie humana sobrevivesse à extinção, o que
é improvável, diante de tantos e tantos e tantos perigos a que a humanidade está
o tempo todo exposta.
Nem precisa ir tão
longe. Pouca gente, hoje em dia, sabe dizer, por exemplo, quem era o rei de
Portugal, na época em que esse sermão foi proferido, em 1644. Sabe dele,
apenas, um ou outro historiador mais aplicado e olhem lá. No entanto, em termos
históricos, não passou tanto tempo assim da ocasião em que viviam, ostentavam
seu efêmero poder e ditavam ordens a torto e a direito. São “apenas”
quatrocentos e tantos anos. Pergunto: quantos se lembrarão dos poderosos de
hoje, digamos, em 2516 (isso, reitero, se a espécie humana não for extinta, o
que é improvável que não seja)? Quem se lembrará do 1% dos detentores atuais da
quase totalidade das riquezas do mundo,
deixando míseras migalhas para os demais 99% dos habitantes da Terra?
Seria o caso de enviar,
por e-mail (ou por outro meio qualquer), cópia desse profundo, honesto e
realista sermão a esses arrogantes biliardários, para lembrar-lhes que eles não
passam de pó, como os demais dos homens. Claro que eles não dariam mínima trela
a essas judiciosas palavras, dando de ombros com um riso de zombaria,
julgando-se onipotentes, com a inútil onipotência que o dinheiro atualmente
lhes confere. Aceitem (certamente não aceitarão) ou não esta lembrança,
todavia, deveriam dar ouvidos às candentes palavras de Antonio Vieira: “ (...)
Os vivos pó, os mortos pó; os vivos pó levantado; os mortos pó caído; os vivos
pó com vento, e por isso vãos; os mortos pó sem vento, e por isso sem vaidade.
Esta é a destinação e não há outra”. E, porventura, há?!!!!
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