Sunday, September 25, 2016

Ao sabor do acaso


Pedro J. Bondaczuk


A redação de um livro, digamos, de um romance, tem regras fixas, universais, que sejam iguais para todos, sem as quais a obra nunca sai do terreno da mera cogitação? Explico-me melhor. Há algum tipo de sequência, como “faça isso antes, depois aquilo, depois aquiloutro” e assim por diante, que redunde, no final das contas, em uma obra literária coerente e consistente? Esta é uma pergunta que me é feita com enjoativa freqüência por quem se julga escritor e, notadamente, por aspirantes a tal. Minha resposta, óbvia, é não! Cada qual escreve da forma que entender ser a mais adequada às circunstâncias, quando, como e onde melhor lhe aprouver. Ouso assegurar que os livros mais apreciados e bem-sucedidos são frutos do acaso. Nascem sem nenhum planejamento. Praticamente “induzem” seus autores a escrevê-los.

Vocês nunca ficaram com uma idéia fixa na cabeça, perturbando dia e noite, por dias, semanas ou até meses, insistente e obsessivamente, e que só deu trégua depois que vocês a expressaram, a puseram no papel (ou, o que é mais comum hoje em dia, na telinha do computador)? Tenho esse tipo de surto seguidamente. Muitos dos meus livros, aliás, nasceram desse jeito. Praticamente se impuseram e na marra. Mas isso nem sempre funciona assim. Várias dessas idéias fixas que tive não renderam rigorosamente nada. Algumas resultaram em livros, mas pela metade, no aguardo de novo “surto” de obsessão para serem eventualmente concluídos. Outras tantas revelaram-se inviáveis até mesmo para uma crônica ou um conto e foram, por isso, “abortadas”, descartadas liminarmente, sem produzir qualquer resultado. Acontece!

Houve casos, também, e mais de um, em que livros inconclusos, esquecidos na memória do computador por anos, subitamente, sem mais e nem menos, me atraíram a concluí-los. E, não raro, os concluí em meros dias, quando não em horas. E foram estes, estranhamente, que findaram por se constituir no melhor da minha produção. Aliás, nosso grande drama – meu e da maioria dos escritores – não é, propriamente, o de produzir as nossas obras. Temos talento suficiente para isso. É o de viabilizá-las comercialmente, de sorte a que cheguem às mãos dos legítimos destinatários: os leitores.

No meu caso, por exemplo, tenho 22 livros acabadinhos, revisados e tudo – e não conto entre eles os interrompidos ao meio, que são muitos, à espera do acaso para que os termine –, mas somente quatro publicados. É uma desproporção enorme. Gasta-se mais tempo tentando convencer editoras a bancarem nossas obras do que propriamente na sua produção. E isso para quem não é mais “virgem” no mercado editorial. Para quem nunca publicou... é uma diabólica roleta russa, uma ousada aventura, uma loteria.

Há livros, por exemplo, que o autor pode vender a alguma editora antes mesmo de iniciar a redação. E mais, pode receber por eles um bem vindo adiantamento. Eu, de minha parte, não me arriscaria a fazer isso. Sei lá quando estarei às voltas com uma dessas tormentosas crises de criatividade, que afetam, periodicamente, todos os que lidam com textos e que surgem e vão embora sem nenhum aviso. Prefiro negociar produtos concretos. Claro que essa “promessa contratual” de produção de uma obra, com o respectivo adiantamento, só funciona para os “medalhões” da literatura, os famosos, que contam com público certo e cativo. Experimente um escritor novato fazer esse tipo de proposta a alguma editora! Levará, por resposta, a porta na cara, ou coisa muito pior.
              
Há, por outro lado, livros que parecem que jamais irão “sair”, mas que, quando ninguém espera, zás! Saem! Tenho um amigo escritor que levou doze anos para produzir seu primeiro romance. Por um tempão, foi vítima de chacotas da turma, que achava que ele nunca escreveria a tal história, cuja sinopse não cansava de nos repetir. E não é que ele escreveu mesmo?! Não só escreveu, como publicou. E não só publicou, como seu livro não pára de vender, de esgotar edições após edições. Reservo-me o direito de citar o milagre, sem revelar o santo. Não direi de quem se trata, pois hoje ele é um nome nacionalmente conhecido.

Aliás, é na sua experiência que me baseio para nutrir esperanças de que meu primeiro romance, “O sinterklaas de Rotterdam” (do qual publiquei, recentemente, neste espaço, um dos capítulos) breve deixará de ser promessa, para se constituir em realidade. Trabalho nele há já cinco anos. Mas, a bem da verdade, não “trabalho” tanto assim. Há ocasiões em que se passam até seis meses sem que eu lhe acrescente uma única palavra, uma só vírgula ou ponto. De repente, em uma manhã qualquer, escrevo feito um louco de três a quatro capítulos de uma vez. E assim, as coisas vão seguindo. Aos poucos, a mera sinopse vai ganhando forma de romance. Quinze capítulos já estão prontos. Creio que faltem, ainda, uns dez. E estes tanto podem nascer já amanhã, quanto levar mais cinco anos ou até não serem escritos jamais. Tenho fé de que serão, embora não possa oferecer nenhuma garantia de quando. E muito menos negociá-lo com alguma editora e pedir adiantamento. Não dá!

Já me aconteceu, por outro lado, de um livro ser escrito em somente cinco dias. E foi publicado e graças a Deus vendeu muito bem. Claro que não chego nem perto do escritor português Camilo Castelo Branco. Dizem as más línguas que, premido por credores, que ameaçavam levá-lo à justiça por dívidas não pagas (e ele devia uma barbaridade!), escreveu um de seus romances mais famosos em reles 24 horas. Não garanto que não seja lenda, mas também não duvido. A versão dá conta, ainda, que a tal história, urdida e redigida entre uma aurora e um ocaso, foi “Amor de perdição”. Seria autobiográfica? Não duvidaria que fosse.

Reitero, pois, o que escrevi no início destas descompromissadas reflexões: não há nenhuma norma fixa, que determine forma e prazo para a redação de um livro. Via de regra, ele nasce ao sabor das circunstâncias, que alguns optam por chamar de “destino” e que eu prefiro denominar de “acaso”.


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