O incorrigível “Homo
Demens”...
Pedro
J. Bondaczuk
O conto “Guerra dos
santos”, do escritor siciliano Giovanni Verga, é um primor de ironia e
bom-humor, retratando a mortal inimizade entre dois grupos rivais, de uma
aldeiazinha qualquer da Itália, motivada não pela política ou pelo esporte, mas
por uma forma equivocada de se encarar e de se praticar religião. Ademais, a
controvérsia que relatou nada tinha a ver com convicções religiosas diferentes,
as antagônicas, como cristãos e muçulmanos, como católicos e protestantes e
como outras tantas, que mancharam a história com insanas cenas de violência e
morte. A questão que ele descreve, com tanta naturalidade e graça, é mais
absurda ainda. Envolve adeptos de uma única religião, no caso a católica, com
dois grupos se digladiando para impor os santos de suas respectivas
preferências, no caso São Roque e São Pascoal.
A rixa, que já durava
décadas, só chegou ao fim quando a aldeia foi atingida por duas desgraças
simultâneas: a seca, que arrasou as lavouras locais e uma epidemia de cólera,
que matou grande número de moradores. Só então os dois grupos que se
hostilizavam se uniram para rogar pela intercessão dos dois santos ao mesmo
tempo. Claro que não vou sequer resumir o enredo, para não estragar o prazer de
quem tiver o privilégio de ler o livro “A vida nos campos”, onde este conto é
um dos oito que compõem tal obra. Limito-me, somente, a contextualizar a
narrativa de Giovanni Verga.
A guerra dos santos,
que o escritor nos apresenta com tamanha graça e leveza, lembra, e muito, o que
ocorre, por exemplo, nos vários estádios de futebol do Brasil (e, por que não
dizer, do mundo) afora, nos dias atuais, com torcidas organizadas dos vários
times confrontando-se aos pescoções, ás vezes com paus e com pedras, por, no
final das contas, nada que de fato importe. Pelo menos o fanatismo e a mega
tolice são idênticos. A história em questão – classificada por determinado
crítico literário (cujo nome me foge) como “um conto irreverente, cheio de
humor mediterrâneo” – soa muito melhor quando lida no original, em italiano,
idioma, aliás, que nem é tão complicado, por ter a mesma origem que o nosso
português. Pincei um trecho do livro, apenas para dar uma pálida idéia ao
leitor desse relato de Verga.
“(...) De pronto, São
Roque seguia, tranquilamente, pela rua, sob seu dossel, com cachorros ao redor.
Havia grande número de velas acesas em torno. A banda, a procissão e o cortejo
de devotos foram, de súbito, interrompidos por um quebra pau imenso. Houve uma
debandada geral, uma correria dos diabos. Eram padres que corriam com as batinas
arregaçadas. Trombones e clarinetes soavam estridentes no ar. Eram mulheres que
gritavam. O sangue escorria pelo riacho. Uma chuva de paus e pedras caía, como
se fossem peras maduras, nas próprias barbas de São Roque bendito (...)”,
relata o escritor.
E Verga prossegue:
“(...) Chegaram o chefe da polícia, o prefeito e os carabineiros. Foram levados
os que tinham ossos quebrados para o hospital. Os mais turbulentos foram dormir
na cadeia, presos. O santo voltou às pressas à igreja, não mais a passo de procissão.
E a festa terminou como nas comédias de fantoches. Tudo isso ocorreu devido à
inveja dos moradores do bairro que tinha como padroeiro São Pascoal, porque
naquele ano os devotos de São Roque haviam gastado os olhos da cara para
comemorar o santo em grande estilo (...)”.
Ah inveja, inveja que,
segundo a Bíblia foi a causa do primeiro homicídio da história, quando Caim
matou Abel! E o escritor siciliano segue em seu relato: “(...) Recorreram (os
adeptos de São Roque) à melhor banda da
cidade, soltaram mais de dois mil morteiros e estrearam, inclusive, um precioso
estandarte novo, todo recamado de ouro, que pesava mais de um quintal, segundo
diziam e que no meio da multidão parecia uma brasa ardente, dourada e luminosa.
Tudo isso mexia com os nervos dos devotos de São Pascoal. Até que um deles, não
se contendo, perdeu a paciência e se pôs a gritar, pálido de bílis: ‘Viva São
Pascoal!!!’. Foi quando começou a tal pancadaria (...)”. As reações, com as
respectivas conseqüências, não se parecem, caro leitor, com as das torcidas
organizadas dos times em nossos estádios de futebol?!! Como se vê, o tempo
passa, as gerações se sucedem, mas os comportamentos humanos, posto que em
situações diferentes, nunca mudam. Esse é o tal “Homo Sapiens”, que Edgar Morin
preferia classificar de “Homo Demens”, designação que, ao meu ver, lhe cabe a
caráter. Ou não?!!!
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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