Thursday, September 01, 2016

O incorrigível “Homo Demens”...


Pedro J. Bondaczuk

O conto “Guerra dos santos”, do escritor siciliano Giovanni Verga, é um primor de ironia e bom-humor, retratando a mortal inimizade entre dois grupos rivais, de uma aldeiazinha qualquer da Itália, motivada não pela política ou pelo esporte, mas por uma forma equivocada de se encarar e de se praticar religião. Ademais, a controvérsia que relatou nada tinha a ver com convicções religiosas diferentes, as antagônicas, como cristãos e muçulmanos, como católicos e protestantes e como outras tantas, que mancharam a história com insanas cenas de violência e morte. A questão que ele descreve, com tanta naturalidade e graça, é mais absurda ainda. Envolve adeptos de uma única religião, no caso a católica, com dois grupos se digladiando para impor os santos de suas respectivas preferências, no caso São Roque e São Pascoal.

A rixa, que já durava décadas, só chegou ao fim quando a aldeia foi atingida por duas desgraças simultâneas: a seca, que arrasou as lavouras locais e uma epidemia de cólera, que matou grande número de moradores. Só então os dois grupos que se hostilizavam se uniram para rogar pela intercessão dos dois santos ao mesmo tempo. Claro que não vou sequer resumir o enredo, para não estragar o prazer de quem tiver o privilégio de ler o livro “A vida nos campos”, onde este conto é um dos oito que compõem tal obra. Limito-me, somente, a contextualizar a narrativa de Giovanni Verga.

A guerra dos santos, que o escritor nos apresenta com tamanha graça e leveza, lembra, e muito, o que ocorre, por exemplo, nos vários estádios de futebol do Brasil (e, por que não dizer, do mundo) afora, nos dias atuais, com torcidas organizadas dos vários times confrontando-se aos pescoções, ás vezes com paus e com pedras, por, no final das contas, nada que de fato importe. Pelo menos o fanatismo e a mega tolice são idênticos. A história em questão – classificada por determinado crítico literário (cujo nome me foge) como “um conto irreverente, cheio de humor mediterrâneo” – soa muito melhor quando lida no original, em italiano, idioma, aliás, que nem é tão complicado, por ter a mesma origem que o nosso português. Pincei um trecho do livro, apenas para dar uma pálida idéia ao leitor desse relato de Verga.

“(...) De pronto, São Roque seguia, tranquilamente, pela rua, sob seu dossel, com cachorros ao redor. Havia grande número de velas acesas em torno. A banda, a procissão e o cortejo de devotos foram, de súbito, interrompidos por um quebra pau imenso. Houve uma debandada geral, uma correria dos diabos. Eram padres que corriam com as batinas arregaçadas. Trombones e clarinetes soavam estridentes no ar. Eram mulheres que gritavam. O sangue escorria pelo riacho. Uma chuva de paus e pedras caía, como se fossem peras maduras, nas próprias barbas de São Roque bendito (...)”, relata o escritor.

E Verga prossegue: “(...) Chegaram o chefe da polícia, o prefeito e os carabineiros. Foram levados os que tinham ossos quebrados para o hospital. Os mais turbulentos foram dormir na cadeia, presos. O santo voltou às pressas à igreja, não mais a passo de procissão. E a festa terminou como nas comédias de fantoches. Tudo isso ocorreu devido à inveja dos moradores do bairro que tinha como padroeiro São Pascoal, porque naquele ano os devotos de São Roque haviam gastado os olhos da cara para comemorar o santo em grande estilo (...)”.

Ah inveja, inveja que, segundo a Bíblia foi a causa do primeiro homicídio da história, quando Caim matou Abel! E o escritor siciliano segue em seu relato: “(...) Recorreram (os adeptos de São Roque)  à melhor banda da cidade, soltaram mais de dois mil morteiros e estrearam, inclusive, um precioso estandarte novo, todo recamado de ouro, que pesava mais de um quintal, segundo diziam e que no meio da multidão parecia uma brasa ardente, dourada e luminosa. Tudo isso mexia com os nervos dos devotos de São Pascoal. Até que um deles, não se contendo, perdeu a paciência e se pôs a gritar, pálido de bílis: ‘Viva São Pascoal!!!’. Foi quando começou a tal pancadaria (...)”. As reações, com as respectivas conseqüências, não se parecem, caro leitor, com as das torcidas organizadas dos times em nossos estádios de futebol?!! Como se vê, o tempo passa, as gerações se sucedem, mas os comportamentos humanos, posto que em situações diferentes, nunca mudam. Esse é o tal “Homo Sapiens”, que Edgar Morin preferia classificar de “Homo Demens”, designação que, ao meu ver, lhe cabe a caráter. Ou não?!!!


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