Tuesday, September 20, 2016

“Bagaço” para fermentar idéias

Por Pedro J. Bondaczuk


O hábito da releitura é uma das minhas manias mais renitentes – e, certamente, a mais saudável e proveitosa das tantas que tenho – que adquiri há cerca de 30 anos e que se torna mais intenso à medida que o tempo passa. Houve ocasião em que detestava fazer isso. Por melhor que um livro fosse, o lia de um único sopro e depois o relegava a uma prateleira qualquer da minha vasta, mas caótica, biblioteca. Quem saía perdendo com isso, claro, era eu, e não o autor.

Dia desses, relendo textos selecionados, desses que sempre que posso saboreio outra vez – pedaço a pedaço, como a uma deliciosa torta – topei com  uma crônica do advogado, jornalista e professor Isolino Siqueira, intitulada “Defeito de fabricação”, que ele escreveu (ou publicou, sei lá!) em 9 de setembro de 1984, em que aborda exatamente a questão da releitura.

Antes, peço licença para abrir um parágrafo para apresentar (a quem não o conhece, evidentemente) esse intelectual cuja obra tanto admiro. Conheci-o na Faculdade de Direito da PUC-Campinas. Lecionava “Economia Política” (nem sei se essa matéria ainda consta do currículo do curso). Isolino Siqueira foi, portanto, meu professor e dos mais exigentes. Bendita exigência! Mas o acaso é caprichoso. Vejam o que ele me aprontou! Tornei-me seu colega de Academia Campinense de Letras. Fui alçado à condição de “imortal” em 1992. Como se vê, tornei-me “parceiro” de ninguém menos que o saudoso mestre que tanto admirava. E por pouco ele não foi também o meu chefe no Correio Popular de Campinas onde, durante muitos anos, foi Diretor de Redação. Fui contratado como editor pelo jornal exatamente na ocasião em que meu professor estava deixando o cargo, para assumir outras (e mais elevadas) responsabilidades. Mas tive ocasião de manifestar-lhe, e de público, minha admiração e respeito. Fiz uma conferência na Academia abordando o “cronista” Isolino Siqueira, e sua importância para o jornalismo de Campinas. Peguei-o de surpresa e judiei do seu nobre coração. Fiz a “malvadeza” de arrancar lágrimas de emoção do querido mestre.

Voltemos, porém, à referida crônica. Nela, Isolino, após mencionar vários dos seus hábitos, aos quais classifica de “manias”, confessa: “Os livros, estes eu os guardo. Tenho por eles um carinho à parte e não entendo bem guardá-los como se isso fosse colecionar livros. Entretanto, não gosto de reler. Mais parece preguiça mental. Livro lido é como bagaço. Guarda-se para aproveitá-lo como fermento de vez em quando”.

Ao contrário do mestre, porém, como já enfatizei, sou vidrado em releituras. Há uns trinta anos, reitero, eu não era assim. Tinha sede e fome de conhecimento e minha voracidade por ler coisas novas impedia-me de saborear o “deja vu”. Tolice minha, claro. Porque, na primeira leitura, na ânsia de chegar à última linha para descobrir a conclusão do autor da sua história (ou tese, ou seja lá o que for), muita coisa nos escapa. Não percebemos muitas nuances, determinadas sutilezas, que tendem a valorizar (ou desvalorizar quando se trata de um mau escritor) certos autores.

Em minha programação de leituras para o ano, intercalo livros novos, recém-adquiridos, com outros já lidos. Alguns, há décadas. Outros, há meros meses. Claro que nem sempre respeito essa pauta (e nem poderia). Freqüentemente, recebo lançamentos, quer de amigos, quer de autores que só conheço de nome (e alguns, nem isso), que me pedem para fazer críticas às suas obras. Para não causar desespero aos editores dos espaços que ocupo (em jornais e na internet), pois sei o quanto o deadline é importante, esses livros ganham prioridade e bagunçam toda a programação. Isso, porém, afeta apenas a leitura,  nunca a releitura, que para mim é “sagrada”. Como se vê, a coisa já descambou, mesmo, para mania.

Entre as preciosidades que reli há dez anos, em 2016, duas se destacam. Uma, foi a releitura da coleção completa dos “Sermões” do Padre Antônio Vieira, sem favor algum, um dos maiores estilistas de língua portuguesa em todos os tempos. Quem tem a pretensão de escrever (e já nem digo escrever bem), tem a obrigação de ler, pelo menos uma vez na vida, as inspiradas páginas deixadas por esse controvertido, mas talentosíssimo sacerdote. Já reli os “Sermões” de Vieira três vezes e pretendo fazê-lo muitas mais.

A outra releitura foi do livro “A guerra do fim do mundo”, do peruano Mário Vargas Llosa, que havia lido por ocasião do seu lançamento, em 1981, sem lhe dar o devido valor. O autor aborda o episódio de Canudos, o fato da história brasileira sobre o qual mais se escreveu até hoje (foram mais de 700 textos, entre livros, monografias etc.) e sobre o qual menos as pessoas conhecem. A abordagem é absolutamente precisa, embora se trate de um romance. Llosa mistura, com maestria e inegável talento, personagens reais com outros de ficção, para nos brindar com uma obra estonteante, magistral, dessas de nos tirar o fôlego quando chegamos à página final. Entendo, pois,  como um escritor que escreve um livro tenha ganhado um Nobel de Literatura! É o que se pode chamar de “barbada”, de “caçapa cantada”, embora a Academia Sueca não seja levada tão a sério. Por isso, “A guerra do fim do mundo” mereceu toda uma crônica à parte, que escrevi tempos atrás.

Mas a maior utilidade das minhas releituras se manifesta quando atravesso uma dessas fases – tão temidas para quem vive de textos – de obliteração mental. Quando as idéias originais teimam em não se manifestar, para meu (evidente) desespero, já que tenho a obrigação de produzir, por força de compromissos assumidos, dez crônicas originais por semana, sejam quais forem as circunstâncias. É então que esse “bagaço” (no dizer do professor Isolino) mostra a sua força. Fermenta idéias, aparentemente banais, que, após passarem por esse processo, se transformam. Viram capitosos “vinhos”, que me causam embriaguez. E repasso isso às minhas crônicas. Meu medo é, apenas, que esse novo “produto”, originado dessa fermentação mental, não seja de má-qualidade, daqueles que causam terríveis ressacas e provocam uma renitente dor de cabeça em quem o consome. Espero que não seja este o caso destas mal-traçadas linhas.

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