Saturday, September 24, 2016

Cremlin substitui diálogo por ameaças


Pedro J. Bondaczuk


O presidente Mikhail Gorbachev, que em geral se mostrou coerente ao longo da sua vida pública, parece agora descambar para a incoerência. Suas últimas atitudes e declarações refletem temor, desconfiança, insegurança. Dão a entender que a crescente oposição que vem encontrando para a implantação de suas reformas o assusta.

Ele demonstra não confiar em seu próprio povo, na medida em que não encontrou nele o apoio que esperava para a execução da perestroika. Gorbachev, a partir de 1987, estimulou o liberalismo. Procurou despertar a consciência adormecida dos soviéticos para seus próprios problemas. Incentivou que as principais questões nacionais, os grandes focos de descontentamento popular, não fossem mais murmurados aos cochichos pelos cantos, com receio da onipresente KGB, mas trazidos à luz da opinião pública.

Subitamente, não se sabe por que, o presidente passou a perseguir veladamente os liberais, assustado com as dimensões adquiridas pelos movimentos nacionalistas. Começou a ver neles não os aliados naturais que são, mas adversários.

Tivesse Gorbachev utilizado a estratégia original, a do amplo debate de idéias, ao invés da repressão, da intimidação e da coação, talvez, já haveria superado amplamente os separatistas, com seus argumentos, pois é um exímio argumentador.

Provavelmente os secessionistas teriam caído em ridículo e ele poderia atacar de vez o verdadeiro problema soviético, que não é o separatismo, dada a relativa expressão das Repúblicas que querem se separar da URSS, mas a queda na produção, a má qualidade dos produtos, o sucateamento industrial, o despreparo da mão de obra, as ilhas de miséria tão grandes quanto continentes existentes em sua sociedade, enfim, as péssimas condições de vida do seu povo.

Seu apelo por uma moratória nas greves e manifestações públicas reflete até uma pontinha de pânico pela possibilidade da ocorrência de uma guerra civil. Esta, se tiver de acontecer, ocorrerá de qualquer forma e não será por culpa de Gorbachev. Ele se transformou somente no alvo concreto dos descontentamentos populares, acumulados há décadas.

Seu ex-chanceler, durante muito tempo tido como um dos melhores amigos pessoais, Eduard Shevardnadze, que surpreendentemente renunciou ao cargo em 20 de dezembro de 1990, após alertar que havia sintomas de iminência de uma nova ditadura no país, expressou, em entrevista pela televisão em 31 de março passado, a perplexidade, que é geral, com a atitude incoerente assumida nos últimos tempos pelo presidente.

"Não compreendo a atual campanha do governo contra os liberais. Foi a própria política de Gorbachev que permitiu que eles surgissem e crescessem", expressou na oportunidade. "Não vejo nada de terrível na luta dos democratas pelo poder. Afinal, nós mesmos permitimos a formação dos movimentos democráticos no país e deveríamos estar psicológica e moralmente preparados para essa situação que, gostaríamos de enfatizar, é absolutamente normal", acrescentou.

O mesmo Gorbachev, que em 17 de maio de 1990 dizia "quando o povo começa a repetir 'caos, caos, desintegração, desintegração' estou certo de que Lenin, como observador, diria que esse caos cristalizará uma nova forma de vida", agora adverte: "Hoje temos de agir. Agir juntos, não separadamente. Mas com unidade e com todas as forças vivas. Temos de agir para não deixarmos que o país caia numa catástrofe".

Como se observa, o presidente acabou contaminado pelo catastrofismo que sempre vinha condenando. Certamente, Gorbachev tem sido mal assessorado nos últimos tempos. Muitos dos reformistas de primeiro momento se bandearam para a oposição, ao primeiro sinal de perigo do "barco naufragar", deixando-o entregue às feras conservadoras.

(Artigo publicado na página 14, Internacional, do Correio Popular, em 11 de abril de 1991).


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