Qualidade
como objetivo
Pedro J. Bondaczuk
O ensaísta norte-americano Ralph Waldo Emerson,
autor, entre outros, de dois livros hoje considerados clássicos no mundo da
cultura, "Ensaios" e "Diários"‚ é , ao lado de Henry David
Thoreau e de Montaigne, um dos meus preferidos. Essa preferência pelo escritor
de Boston deve-se, exatamente, ao fato dele ser uma espécie de contraponto a
esses dois. Trata-se de um intelectual positivo, que crê na racionalidade
humana e põe como limite ao talento e à criatividade – não especificamente
literários – "as estrelas". Ou seja, recomenda que ousemos, que
busquemos esgotar nossas potencialidades, que sejamos autoconfiantes,
autodisciplinados e até obstinados na busca do topo, do ápice, do cume da nossa
atividade. Thoreau, por outro lado, é amargo em determinados ensaios, embora
defensor radical da individualidade. E Montaigne é um verdadeiro
"cirurgião da alma humana". E o que encontra nela nem sempre é
bonito, nobre e louvável.
Uma das citações de Emerson, que grifei quando da
primeira leitura e sobre a qual busco refletir periodicamente, é a seguinte:
"Se um homem pode escrever um livro melhor, pregar um sermão melhor, ou
fazer uma ratoeira melhor do que o vizinho, mesmo que construa sua casa na
floresta, o mundo abrirá uma trilha até sua porta". Seria, de fato, tão
simples? As pessoas estariam dispostas, sem esta ou mais aquela, a reconhecer e
valorizar os talentos alheios, em meio a tanta competição desleal, onde não há
regras estatuídas e onde raramente a ética e a moral prevalecem? Haveria tanto
critério? Haveria tanta justiça para com os que criam, os que ensinam, os que
pregam, os competentes, os abnegados, os íntegros e os "melhores"?
Não certamente! Não pelo menos como prática geral. Há, além destes, muitos
outros pontos a ponderar.
Para que alguém nos procure porque escrevemos um
livro melhor, ou pregamos um sermão melhor ou fizemos uma ratoeira melhor, é
preciso, antes de tudo, que todos saibam disso. Aí entra o primeiro obstáculo:
a divulgação da nossa "excelência". Os recursos que o cidadão dispõe
para isso são extremamente frágeis. Quantos têm acesso aos meios de
comunicação, nessa maré humana que há no Planeta neste fim de milênio? Poucos.
Diria, pouquíssimos. E destes, quantos têm o poder de convencer os comunicadores
de que de fato são o supra-sumo de suas respectivas atividades? Menos ainda.
Ademais, o conceito de melhor ou pior é puramente subjetivo. Depende do preparo
intelectual, do gosto, do critério de julgamento, da imparcialidade e da
boa-vontade do julgador. São inúmeros, por exemplo, os escritores que foram um
fracasso enquanto vivos e que só tiveram seus talentos reconhecidos depois de
mortos. Ou que, mesmo reconhecidos, não conseguiram unanimidade. Basta citar a
interminável relação dos injustiçados do Prêmio Nobel de Literatura.
Em outras artes e ofícios isso também ocorre. O
exemplo mais evidente é o do pintor Vincent Van Gogh. Quantos quadros o mestre
holandês vendeu em vida? Apenas dois, e assim mesmo ao seu irmão, que os
adquiriu a título de estímulo. Morreu infeliz e amargurado, em um manicômio,
sendo, sob os padrões da sua época, o protótipo acabado do fracassado. Hoje,
essas mesmas telas que pintou e foram ridicularizadas pelos críticos e
recusadas pelos "marchands", têm um valor inacessível para a maioria
dos bolsos. São as obras de arte mais caras jamais vendidas em qualquer parte
do Planeta. O tempo fez-lhe justiça. Mas o mundo nunca abriu "uma trilha
até a sua porta". Claro que Emerson não pretendeu aconselhar ninguém a se
acomodar com sua excelência, esperando um reconhecimento automático e
consensual por parte da sociedade. O que fez foi uma apologia da qualidade.
Vendeu a idéia que devemos buscar ser os melhores no que fazemos, apesar da
subjetividade desse conceito.
Cada um de nós vem ao mundo com duplo compromisso. O
primeiro (nossa maior obrigação na vida) é o de sermos felizes. O segundo, não
menos importante, é o de acrescentarmos conhecimentos e experiências ao
patrimônio cultural comum, que vem sendo engrossado e enriquecido desde o
surgimento da humanidade civilizada, do qual usufruímos enquanto estamos vivos.
A esse propósito, Jacques Maritain observa: "Por ser capaz de adquirir
conhecimentos o homem não progride na sua vida específica...sem a experiência
coletiva, previamente acumulada e preservada, e sem a transmissão normal de
conhecimentos adquiridos". E para esse usufruto e esse acréscimo ao
"estoque" cultural humano, convenhamos, não podemos "construir
nossa casa na floresta" do isolamento.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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