A Rua dos Cataventos
Pedro J. Bondaczuk
A poesia de Mário Quintana
encanta, por todos os motivos imagináveis, até quem não aprecie o gênero. Tem
musicalidade, ritmo, harmonia, metáforas originais e sumamente criativas e até
rimas, quando oportunas. Não lhe falta nada, portanto, nem mesmo variedade de
temas e de formas, alternando estilos de uma produção para outra com a mesma
agilidade e suprema criatividade. Não é, pois, como determinados poetas que
produzem um ou outro poema excelente, próximo da perfeição, sendo o restante de
sua obra uma mesmice de irritar até estátuas.
Contudo, a característica que
personaliza a poesia de Quintana, o que a marca e a torna singular, é o tom
coloquial que adota. Isto faz do leitor mais do que mero “consumidor” de versos:
torna-o cúmplice. Há, em cada poema seu, indisfarçável toque de ironia, mas na
medida certa e não daquela ironia ácida e mal-humorada, que implica,
tacitamente, em crítica, mas a repleta de bom-humor e de pungente ternura.
Quintana amava a tudo e a todos,
sobretudo a Porto Alegre, cidade que adotou como sua que, a exemplo da Alegrete
natal, traz a palavra “alegria” no nome. E esse amor respinga em toda a sua
poesia, sem nenhuma exceção, porém sem pieguice e nem pedantismo. Aliás, é
apenas insinuado, nunca (ou quase nunca) explicitamente declarado. Captamo-lo,
todavia, ao ler qualquer dos seus versos.
Na minha relação de poetas
brasileiros favoritos (e são tantos!), cinco se destacam e dos quais me
considero “cúmplice”, sendo um gaúcho, um carioca, uma fluminense (não é a
mesma coisa), um mineiro e um pernambucano. O leitor atento e bem-informado com
certeza já identificou quais são. Em todo o caso... nomeio-os, de maneira
explícita. São, respectivamente: Mário Quintana, Vinicius de Moraes, Cecília
Meirelles, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. Que time! Todos
merecedores de um Prêmio Nobel, que nunca receberam.
Desse quinteto, todavia (não
consigo esconder) tenho ligeira predileção pelo meu conterrâneo, embora os
outros quatro tenham características um tanto semelhantes e me encantem e
deliciem da mesma maneira. Todos os cinco são responsáveis pela minha visão
peculiar de vida: pela valorização do que é belo, alegre e nobre.
Sou capaz de recitar, todavia,
num sopro, sem precisar ler, pelo menos quatro dezenas de poemas marcantes do
meu conterrâneo. E não se trata de ter boa memória (que de fato tenho), mas de
identidade espiritual com o poeta. Recito-os de olhos fechados e vejo-o,
nitidamente, à minha frente. E mais, ouço o próprio Quintana (que se
materializa diante de mim) dizer seus versos, com um brilho maroto e terno no
olhar e com aquela sua inflexão de voz peculiar e aquele delicioso sotaque dos
Pampas, que para mim é música dos anjos. (Ele tinha uma forma característica de
sorrir. Sorria não somente pelos lábios, mas também pelos olhos). Nenhum outro
poeta, por mais que admire sua poesia, me produz esse mesmo efeito.
Até quando trata da morte,
Quintana não deixa de retratá-la de forma irreverente e brincalhona, com humor
e picardia, sem a solenidade e o toque de horror de outros colegas. Prova?
Cito, sem pestanejar, este soneto intitulado “A Rua dos Cataventos”, que nos
meus momentos de desânimo e irritação, recito, em voz alta (causando, não raro,
espanto, nos que cruzam comigo, preocupados com minha sanidade mental):
“Da primeira vez que me
assassinaram,
perdi um jeito de sorrir que eu
tinha.
Depois, a cada vez que me
mataram,
foram levando qualquer coisa
minha.
Hoje, dos meus cadáveres eu sou
o mais desnudo, o que não tem
mais nada.
Arde um toco de vela amarelada,
como único bem que me ficou.
Vinde! Corvos, chacais, ladrões
de estrada!
Pois dessa mão avaramente adunca
não haverão de arrancar a luz
sagrada!
Aves da noite! Aves de horror!
Voejai!
Que a luz trêmula e triste como
um ai,
a luz de um morto não se apaga
nunca!”.
De fato, nunca se extingue. A de
Quintana brilha na escuridão das almas dos que têm o privilégio de se deliciar
com seus versos, iluminando-as e guiando-as nas trevas.
A exemplo do poeta meu
conterrâneo, também tenho a minha Rua dos Cataventos. Não tem esse nome, claro.
E não fica em Porto
Alegre , mas nesta Campinas que tanto amo (e que um dia
acolherá, para sempre, meus restos), mas também está repleta de poesia.
Sobretudo à noite, quando aquele bêbado solitário passa, trocando as pernas,
pela calçada bem em frente à janela do meu gabinete de trabalho, dialogando com
a lua, discutindo com as estrelas, fazendo coro com os mochos e os cães,
embriagado de sonhos e fantasias.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk..
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