Monday, September 26, 2016

Arte pelo amor à vida



Pedro J. Bondaczuk


O poeta irlandês Seamus Heaney, desconhecido em âmbito internacional (mas dizem que bastante apreciado em seu país), foi o ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1995. A Academia da Suécia, responsável pela outorga, justificou, na oportunidade, a escolha ressaltando que seus poemas exaltam os milagres diários que ocorrem na vida do homem. E quantos não se verificam cotidianamente! Claro que se trata, na maioria das vezes, dos pequenos, daqueles que sequer percebemos. Mas estão presentes. E todos os dias. O simples fato de acordarmos vivos a cada manhã é milagroso. A Terra é tão frágil e exposta a tantos perigos e o homem tão pequeno, que essa sobrevivência chega a ser excepcional. Mas não nos damos conta.

Optamos pelo exercício covarde e inútil das lamúrias, queixas e recriminações. Escolhemos objetivos errados para correr atrás e com isso construímos somente a infelicidade. Experimente, leitor amigo, a título de teste, cumprimentar alguém agora, qualquer pessoa, conhecida ou não. Pergunte-lhe o de praxe: "como vai?". A resposta certamente vai variar muito pouco, apenas na ênfase. "Mais ou menos", dirão alguns (talvez a maioria). "Mal", responderá secamente o sujeito sisudo e eternamente mau-humorado. "Vou indo", afirmará  vagamente outro. E assim por diante. Claro que a insatisfação, na devida dose, é saudável. Mas desde que acompanhada do necessário esforço para satisfazer o que se deseja ou que se precisa.

Contudo a vida é um milagre. Nossas pequenas vitórias diárias sobre os instintos e sobre as deficiências (todos temos as nossas) o são. O suceder das gerações... Os ciclos da natureza... As quatro estações... A correspondência no amor... As oportunidades... A aquisição de conhecimentos... As artes... Tudo isso é um milagre! Mas nós não nos satisfazemos com o que julgamos ser tão pouco. Queremos mais, muito mais. Aspiramos o poder. Nos trucidamos por bens cuja posse será apenas transitória, no espaço relativamente curto da nossa existência. Colocamos a "miragem" da propriedade como dogma sagrado, sem admitir contestações. E achamos que somos civilizados.

Érico Veríssimo, em seu livro "O resto é silêncio", põe na boca de um personagem aquilo que considero o meu credo, enquanto indivíduo e intelectual. Diz: "Arte pelo amor da vida. Pinta-se, compõe-se música, escreve-se romance ou poesia, faz-se escultura, enfim, praticam-se todas as formas de arte, parece-me, num desejo de imitar a vida, corrigi-la, compreendê-la, ampliá-la ou fruí-la da maneira mais sensualmente larga. E não devemos esquecer que nisso, como em tudo o mais, há sempre a presença do mistério". Eu diria, do milagre.

A poesia, no Brasil, é tratada como um gênero menor, maldito, visto com menosprezo pelo público e pelos editores. Os mais broncos acham que se trata de coisa de "maricas". Para outros, não passa de jogo de palavras. Outros ainda confundem-na com a  água com açúcar banal, de rimas pobres, popularesca, que alguns tentam lhes impingir. Para um poeta lançar um livro, tenha o valor literário que tiver, precisará custear a edição. Nenhuma editora se arriscará a bancá-lo. Argumentará com o risco do encalhe. E raramente o infeliz autor consegue vender um número de exemplares suficiente que lhe permita sequer recuperar o investimento.

Não preciso ir longe para fazer essa constatação. Cito o caso dos meus dois livros inéditos de poesia, “Carrossel” e “O poeta de alma azul”, cujos poemas venho postando, há já alguns dias, nas redes sociais. Admito que não sou nenhum Quintana, ou Drummond, ou Bandeira. Talvez até chegasse a esse patamar caso me sentisse “motivado”. Se meus poemas não são geniais (não são mesmo) não fogem, todavia, da média de qualidade dos que têm livros do gênero publicados. Com eles, venci alguns concursos, regionais e até nacionais, em que não conhecia nenhum jurado e, portanto, a conquista não se deveu a nenhuma “marmelada”. No entanto... cansei de ser recusado por editoras, pelas razões mais pueris que se possa imaginar. Decidi que eles permanecerão inéditos e ponto final.

A não ser que se trate de um dos chamados "monstros sagrados" das letras, como Drummond, Bandeira, Mário de Andrade, Guilherme de Almeida e um ou outro mais, nossas oportunidades de publicação são ZERO. E todos estes poetas citados também enfrentaram as mesmas dificuldades que os desconhecidos enfrentam para brindar o público com sua arte. No entanto, a poesia está longe de morrer. Felizmente. Caso morresse, o mundo, que já é tão chato, se tornaria chatérrimo, sombrio, horrível e insuportável.

Todos os dias aparecem novos e bons escritores do gênero, dispostos a todos os sacrifícios para comunicar aos outros os seus sentimentos. Para desvendar-lhes um mundo novo de beleza, de harmonia e de humanidade. O pior é que este ato de generosidade é, invariavelmente, mal-interpretado. É visto como mera manifestação de vaidade. E ainda assim os poetas persistem. É outro milagre do cotidiano. São pessoas que fazem arte pelo amor à vida. São prestidigitadores que tiram da cartola da realidade pombas brancas de paz. São mágicos que constróem mundos da frágil matéria-prima das palavras. Murilo Mendes constata: "A poesia é muito grande/mas o alfabeto é bem curto". Por isso, a atribuição do Nobel a Heaney, que sabe vislumbrar estrelas, onde a maioria das pessoas apenas vê uma suja poça de água, foi bastante justa. Trata-se de alguém que, de tanto exaltar os milagres do cotidiano, viu o maior deles se materializar diante dos olhos.


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