Vida supera a ficção
Pedro J. Bondaczuk
A vida de determinados
escritores, não raro, supera, e em muito – em termos de interesse – a sua
própria obra, por mais criativa, inteligente e oportuna que esta seja. Alguns
dão exemplos magníficos de garra, determinação e coragem e vão muito além dos
próprios limites, encarando os obstáculos e dificuldades que têm que enfrentar
com otimismo e com bom-humor.
Outros, têm trajetórias trágicas
e nada exemplares. Estes, via de regra (nem sempre, é claro) recorrem ao álcool
e/ou às drogas, na tentativa (vã) de calar seus “demônios interiores”. Há casos
e mais casos que oscilam entre estes dois extremos, com várias graduações,
positivas ou negativas. Inclusive existem os que se mostram, sobretudo,
coerentes, e cuja vida e obra rivalizam entre si, quando não se igualam em
interesse e grandeza.
Classifico nesta categoria um
escritor que sempre me fascinou (e que, invariavelmente cito, quando o assunto
vem à baila) tanto pelos livros que escreveu, quanto, e principalmente, pela
forma que encarou suas dificuldades e fraquezas e as venceu ou, pelo menos, as
minimizou. Refiro-me ao escocês, natural da cidade de Edimburgo, Robert Louis
Stevenson, nascido em 13 de novembro de 1850.
É dele uma citação que anotei,
pedi para um artista gráfico reproduzir em letras góticas e mandei enquadrar,
mantendo esse quadro na parede bem em frente à minha escrivaninha, para me
inspirar no cotidiano, especialmente naqueles dias em que nada parece dar certo
e que ameaçam ficar perdidos. De tanto ler e repetir suas palavras, como uma
espécie de mantra, até já as decorei. São estas: “Qualquer um pode carregar o
seu fardo, embora pesado, até anoitecer. Qualquer um pode fazer seu trabalho,
embora árduo, por um dia. Qualquer um pode viver mansamente, pacientemente,
amistosamente, até que o sol se ponha. E é isso o que a vida realmente requer”.
Robert Louis Stevenson viveu às
voltas, desde a tenra infância, com uma
renitente tuberculose, da qual jamais se curou. A doença, porém, não o impediu
de viajar por várias partes do mundo, registrando, meticulosamente, as
impressões dessas viagens – as pessoas que conheceu, os lugares pitorescos que
viu, os costumes e tradições exóticos com os quais entrou em contato etc. –
deixando esses preciosos registros como legado para a posteridade.
A figura que se tornou marcante
na vida do escritor, que determinou sua personalidade e até sua carreira, e que
ele guardou para sempre na memória, foi a de uma jovem enfermeira que seus pais
contrataram para tomar conta daquele menino enfermiço, chamada Cummy.
Denominou-a de “meu anjo da minha vida de criança”. Durante as freqüentes
crises de tuberculose que o acometiam, para acalmá-lo, ela lhe contava
histórias e mais histórias de piratas, além de contos folclóricos da Escócia.
Deu no que deu.
Seus pais exigiram que cursasse
Direito, o que o moço fez em Londres. Todavia, jamais advogou. Não era esse
seu destino e muito menos sua vocação. Tudo em Stevenson foi precoce, inclusive
o talento de escrever. Tinha que viver com pressa, afinal, a morte não cessava
de o rondar. Passou a dedicar-se à literatura a partir de 1871, com 21 anos de
idade. Escreveu de tudo: contos, novelas, poemas, ensaios, impressões de
viagens, estudos de estética e, claro, romances (o gênero que o consagrou).
É dele um dos clássicos da
literatura juvenil, “A ilha do tesouro”, que escreveu para um sobrinho de 13
anos, que havia, há pouco, ficado órfão. Em 1880, surpreendeu todo o mundo e
casou-se com uma norte-americana divorciada, mãe de dois filhos, muito mais
velha do que ele, chamada Fanny Osborne, e se mudou para os Estados Unidos,
onde, aliás, não ficou por muito tempo. Era uma espécie de cigano. A despeito
da doença, não parava em lugar algum.
A verdadeira consagração, a
notoriedade artística de Robert Louis Stevenson veio em 1886, aos 36 anos,
quando escreveu “The stranger case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde” (em português,
“O médico e o monstro”), um dos livros mais adaptados para teatro cinema e
televisão de todo o mundo e que inspirou até dezenas de histórias em
quadrinhos, além de várias centenas de ensaios. O escritor revelou, em
entrevista publicada no jornal “The New York Herald”, em 8 de setembro de 1887,
que o argumento do romance lhe veio num sonho. Hoje, essa obra, é considerada
uma das precursoras da ficção científica. No livro, Stevenson retoma o velho
mito do duplo, resgatado pelo romantismo alemão do “Doppelgänger”.
Além da “Ilha do tesouro” e do
“Médico e o monstro”, publicou vários outros best-sellers, entre os quais “A
Flecha Negra”, “As aventuras de David Balfour”,
“O morgado de Ballantrae” e “Nos mares do Sul”, escrito nas Ilhas Samoa,
onde viveu os seis últimos anos de sua vida e onde morreu – não vítima de
tuberculose, como seria de se esperar, mas de hemorragia cerebral – em 3 de
dezembro de 1894, 20 dias após haver completado 44 anos.
Na Oceania, Stevenson era chamado
pelos nativos de “Tusitala”, que significa “o contador de histórias”. Apesar de
ser considerado pelos críticos literários, basicamente, autor de literatura
juvenil, e acusado, por muitos, de escritor afetado (do que sempre discordei),
foi considerado por Graham Greene, Ítalo Calvino e Jorge Luiz Borges, como um
“mestre” da literatura.
Eu iria bem mais longe.
Classificaria esse talentoso lutador como mestre na arte de viver. Afinal, foi
coerente com tudo o que escreveu. Carregou, por 44 anos, seu fardo (e que
fardo!) dia após dia, até o anoitecer. Fez seu trabalho diariamente, com a
diligência de uma formiguinha. Viveu, mansa, paciente e amistosamente, todo o
tempo que lhe foi concedido, até que o sol se pusesse, sem saber se estaria
vivo no dia seguinte. Ou seja, cumpriu todos os requisitos que a vida exige de
cada um de nós. Foi, portanto, na minha modesta avaliação, um vencedor na mais
completa acepção da palavra e em qualquer aspecto que se olhe.
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