Salva pela Literatura
Pedro
J. Bondaczuk
A Literatura tem
importância variável para as pessoas, dependendo de como elas encaram a arte e,
sobretudo, a vida. Para uns, é uma atividade como outra qualquer, embora com
suas regras e técnicas específicas. Para outros, não passa de mero hobby, tanto
na qualidade de leitores, quanto (e nem sempre) de escritores. Para terceiros,
é uma inutilidade em termos práticos, no caso, para os que não apreciam a
leitura e não têm o mínimo talento para se expressarem razoavelmente bem por
escrito. E há várias outras formas de encarar a Literatura.
Mas há os que têm nela
muito mais do que uma atividade profissional. Os que não a consideram um hobby,
mesmo que prazeroso e muitíssimo menos a têm como uma “inutilidade” da qual se
possa prescindir. Esse grupo seleto faz da Literatura algo como religião. É sua
paixão e opção de vida, à qual se dedicam de corpo e alma. Modestamente,
incluo-me neste último caso, embora não tenha certeza que a exerça com
competência e perícia desejáveis. Exerço-a, todavia, com plenitude e convicção,
jamais considerando o meramente bom como suficiente. Persigo, sem nunca
alcançar, a excelência, ou seja, a perfeição. Esse também sempre foi o caso da
poetisa norte-americana Maya Angelou, que faleceu neste 28 de maio de 2014, na
cidade de Winston-Salem, na Carolina do Norte onde residia, aos 86 anos de
idade. Não foi revelada a causa da sua morte.
Embora para mim, o
interesse por sua vida esteja ligado à sua atividade literária, essa mulher
notável, negra, destacou-se em tudo o que fez. Batalhou muito para que isso
acontecesse, é verdade. Foi, por
exemplo, além de escritora, cantora, dançarina, atriz, dramaturga e
compositora. Nas letras, destacou-se, notadamente, por fazer da sua vida, de
sua vasta e não raro dramática experiência pessoal, tema central da maior parte
do que escreveu. Sua autobiografia, em sete volumes, é considerada obra-prima
do gênero. E como poetisa, foi uma das primeiras mulheres negras a se tornar
best-seller nacional. Aliás, foram inúmeros os feitos pioneiros em sua
relativamente longa vida. Um deles foi o fato de haver sido a primeira
motorista de ônibus do sexo feminino, e negra, na cidade de San Francisco. Foi
mulher determinada, idealista, batalhadora. Não por acaso, assessorou dois
presidentes (Gerald Ford e Jimmy Carter) e foi condecorada por outros dois
(Bill Clinton e Barak Obama). Aliás, este último sempre demonstrou mais do que
respeito por ela: reverenciou-a.
A comunidade negra
norte-americana considera-a um ícone, um símbolo, uma fonte de inspiração
e por dupla razão. A primeira, óbvio,
por ser a talentosa e bem sucedida escritora que foi. E a segunda, mais
importante para essa faixa da população, por suas ações como ativista dos direitos
civis. Trabalhou, por exemplo, com Martin Luther King e com Malcolm X, numa
época em que lutar pela igualdade racial era não apenas temeridade, mas
“loucura”, pelos iminentes riscos de vida que impunha. Como cantora e
compositora, Maya sempre foi admirada no meio musical. Influenciou, decisivamente,
vários cantores, como Steven Tyler, Fiona Apple e Kanye West, entre tantos
outros. Uma de suas mais comentadas aparições públicas dos últimos anos foi em
2009, no funeral de Michael Jackson. Na oportunidade, rendeu derradeira
homenagem ao astro pop, de quem era amiga, lendo o poema de sua autoria “We had
him”.
Maya Angelou, frise-se,
não era seu nome verdadeiro. Era um pseudônimo, adotado no início dos anos 50,
com o qual se consagrou. Chamava-se Marguerite Ann Johnson. Nasceu em Saint
Louis, no Estado do Missouri, em 4 de abril de 1928. Passou a infância, além da
cidade natal, na Califórnia e em Arkansas. Quando tinha apenas oito anos de
idade, passou por uma experiência traumática, que mudou por completo os rumos
da sua vida. Foi estuprada pelo namorado de sua mãe. O choque dessa covarde
violência sexual foi tão grande, que a menina perdeu a voz. Permaneceu por
muitos anos sem conseguir falar, situação que superou, apenas, com a ajuda de
uma compreensiva e providencial vizinha. E como se deu tal superação? Aí é que
entra a questão da paixão. Maya foi “apresentada” por sua benfeitora à
Literatura. E apaixonou-se completamente pela atividade.
Inicialmente,
comunicou-se com o mundo, através de textos, em prosa. Mas não tardou a
fazê-lo, sobretudo, em poesia. E quando recuperou a fala, não deixou de
escrever. Muito pelo contrário. Poemas e mais poemas seguiram brotando de sua
inspirada pena. E letras e mais letras de canções que se tornaram sucessos. E
peças e mais peças teatrais, algumas adaptadas para as telas em Hollywood. E
essa paixão culminou com a copiosa e maravilhosa autobiografia, redigida com a
perícia de uma escritora que tinha algo mais, muito mais, do que o mero
traquejo, o indispensável domínio do idioma e da técnica de escrever. Era irremediavelmente
apaixonada pela Literatura, pela qual, confessou, em diversas ocasiões, que
“foi salva”.
Dois dias antes da
morte, em 26 de maio, Maya Angelou parecia bem, embora postasse, em seu perfil
no Facebook, que enfrentava um “problema de saúde”. Mas não revelou qual era.
Escreveu (conforme informa o portal G1): “Uma inesperada emergência médica me
causou grande desapontamento por ter de cancelar minha visita ao jogo
comemorativo pelos Direitos Civis da Major League Baseball. Estou muito
orgulhosa de ter sido escolhida como homenageada. No entanto, os médicos me
disseram que não seria aconselhável viajar naquele momento. Meu obrigado a
Robin Roberts por falar por mim e obrigado a vocês por todas as suasd orações.
Estou melhor a cada dia”.
Todavia, não estava
melhorando como pensava. Tanto que, dois dias depois, deixou a vida para entrar
na história. Junto-me, humildemente, aos milhares de jornalistas e escritores
norte-americanos que nos últimos dois dias têm escrito comovidas crônicas e
inúmeros necrológios em jornais de costa a costa sobre Maya Angelou. Embora
cheio de imperfeições (para meu desconsolo), este é um simples, posto que
comovido e sincero, tributo de um apaixonado por Literatura por alguém que
nutriu da mesma paixão e que, ademais, foi “salva por ela”.
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