O odioso apartheid
Pedro J. Bondaczuk
O enforcamento, ocorrido ontem, na prisão central de
Pretória, do negro sul-africano Benjamim Moloise, além de ressaltar os
ingredientes odiosos reunidos em torno de si, se constitui em um gravíssimo
erro político do regime racista da África do Sul. O país está, atualmente, sob
um virtual "congelamento" de
relações com praticamente toda a comunidade internacional. Até os Estados
Unidos, que através do seu presidente, Ronald Reagan, vinham seguindo a prática
do "diálogo construtivo", em relação a essa minoria branca que julga
ter poderes divinos, decretaram sanções contra ela, embora tíbias e sem grandes
conseqüências práticas. Resoluções sucedem-se no âmbito das Nações Unidas
contra os seguidores do "apartheid" e a maioria negra do país está em
virtual estado de rebelião. Pois foi nesse momento crucial, em que a África do
Sul está tomada pelo ódio, que o presidente sul-africano, Pieter Botha, cismou
de desconsiderar os apelos de clemência, em favor de Benjamim Moloise, vindos
praticamente de todo o mundo. Talvez desconheça o preço que terá que pagar.
E o que o governo de Pretória conseguiu com esse ato
a mais de intolerância e de insensatez? Conter os guerrilheiros do Congresso
Nacional Africano, grupo proscrito, com sede em Zâmbia, que luta no exílio pelo
fim do regime branco? Certamente que não! Ao contrário, deu mais um precioso
mártir à sua causa. Fazer cumprir um ato de justiça, punindo um criminoso que
matou um policial? Isso é muito duvidoso. Afinal, da forma com que foi
realizado o julgamento de Benjamim Moloise, restaram enormes restrições quanto
à certeza de sua culpabilidade. E condenar um réu nessas circunstâncias,
havendo razoável dose de dúvida, à pena capital é, não somente um erro
judiciário, mas um autêntico homicídio do Estado.
Outro detalhe a ressaltar é que um regime que
suprime a cidadania de 22 milhões de pessoas, apenas porque não aprecia a cor
de sua pele, não tem direito algum de levar quem quer que seja a julgamento.
Ele é que deve ser julgado por racismo e condenado à extinção. Se na hora de
escolher seus governantes, de eleger seus legisladores e até de decidir onde
desejava morar ou freqüentar, Moloise não foi considerado um sul-africano, por
que o deveria ser no momento de ter que se submeter às leis elaboradas à sua
revelia, às normas ditadas apenas pelo arbítrio?
O fato do governo racista ter permanecido insensível
a tantos apelos em favor da vida desse jovem de 28 anos, que até gostava de
fazer poesia e acreditava num ideal, mostra bem a face detestável e odiosa do
"apartheid". Não bastasse, para isso, a elaboração de leis ímpias,
que pela sua natureza e doutrina conspurcam a essência do Direito, o regime
acrescentou, aos seus defeitos, o da vingança, cega e sem raciocínio. E aplicada,
certamente, contra alguém de cuja culpabilidade não poderia nunca estar certo,
por conhecer os métodos que ele próprio criou, usados contra os negros
sul-africanos sempre que quer arrancar alguma confissão que lhe seja oportuna.
Benjamim Moloise vem, dessa forma, se somar a outros
de sua raça ceifados pela violência praticada contra os de sua cor. A Steve
Bikko, trucidado alguns anos atrás. À advogada Victória Mxenge, assassinada em
circunstâncias sumamente suspeitas neste ano, sem que o criminoso fosse alcançado
pelo "longo braço da lei". Esse mesmo que desceu com tamanho peso
sobre o jovem, mas que se mostrou incompetente (ou conivente?) para punir o
matador (ou matadores) da ilustre causídica.
Moloise vem se somar a 750 outros seus companheiros
negros, vítimas do estado de loucura que se apossou há 35 anos de toda uma
sociedade, trucidados apenas nos últimos doze meses nessa guerra não declarada,
mas sem trégua. Vem servir de bandeira de uma causa como há mais de duas
décadas serve Nelson Mandela, condenado à prisão perpétua somente porque não
aceitou ser estrangeiro em seu próprio país. Certamente este novo mártir negro
morreu, como havia prometido, entoando a canção de luta do seu povo, ou com ela
pelo menos no pensamento: "Oliver Tambo, Oliver Tambo, vem servir-nos de
guia. Sabemos que você está aí, oculto nos arbustos. A guerra está quase
terminada". Para Moloise, ela acabou ontem, com o fim da sua vida.
(Artigo publicado na página 9, Internacional, do
Correio Popular, em 19 de outubro de 1985)
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