Thursday, May 29, 2014

Marcas, difíceis de apagar, da tirania


Pedro J. Bondaczuk


O papa João Paulo II, no seu atual giro sul-americano, certamente vai ter a oportunidade de ver, sentir e tirar conclusões das terríveis conseqüências que uma tirania traz para os povos tiranizados, que persistem mesmo após o seu término.

Na missa campalque rezou, ontem, na Esplanada das Três Cruzes, em Montevidéu, certamente não pôde deixar de notar os cartazes empunhados por parentes de “desaparecidos” do Uruguai, Chile e Argentina, justamente os três países que se propôs a visitar.

Dois conseguiram, bem ou mal, uma relativa conciliação de suas respectivas sociedades, que no entanto não conseguem esconder as marcas do “furacão” devastador que se abateu sobre elas. O terceiro ainda vive, sabe Deus até quando, esse drama das pessoas sentirem-se prisioneiras até dentro das próprias casas.

Apesar da visita do Papa ao Chile não ter nenhuma conotação de caráter político, seus olhos, certamente, irão perceber a angústia que toma parte de boa parte de sua população, que se apega teimosamente às derradeiras esperanças, de que, como acontece com todas as coisas boas e ruins na vida de todas as pessoas, essa situação dramática, um dia, também vai passar.

João Paulo II vai ter um encontro com o futuro desse país, a sua juventude, e ironicamente, ele vai ocorrer num dos locais de mais triste lembrança desse povo: o Estádio Nacional, em Santiago, palco de tantos dramas solitários, de tanta agressão aos direitos mais sagrados dos indivíduos, de tantos sofrimentos e mortes.

O Papa, que vai ao Chile na condição de “defensor da vida” (que ficou ainda mais ressaltada com a emissão de um documento recente de intensa sabedoria e profundidade, condenando a sua manipulação), terá sempre presente, em cada lugar por onde passar, sombras, fantasmas, lembranças dos que não aceitaram sobreviver sem liberdade e preferiram o caminho do sacrifício pessoal.

Que ninguém espere, no entanto, que ele vá às praças públicas pregar uma sublevação armada. Esse, aliás, nem é o seu papel. Que não se cobre dele nenhum pronunciamento contundente, pois ele sabe que se agisse dessa forma, traria mais prejuízos do que benefícios aos oprimidos para os quais foi levar consolo.

Mas que não se pense que João Paulo II vai ficar omisso diante daquilo que seus olhos puderem ver, seus ouvidos ouvir e seu coração sentir. O simples fato dele ter decidido ir a um país que vive sob um regime ditatorial já foi um ato de coragem, daquele que vem de uma postura moral exemplar para o mundo de hoje, onde posições claras e coerentes não abundam, e a perfídia e a dissimulação são práticas rotineiras no comportamento dos líderes mundiais.

O Papa esteve, no passado, em outras terras que viviam oprimidas e que hoje respiram democracia. Como as Filipinas, de Ferdinand Marcos. Como o Haiti, de Baby Doc. E como vários outros países por onde passou em suas 33 andanças anteriores. Portanto, conhece o que é uma ditadura.

Quem sabe a sua presença no Chile abra os olhos das partes em conflito e as faça entender que, embora por caminhos diferentes, ambos os lados querem a mesma coisa, ou seja, a segurança, a prosperidade e a grandeza da pátria. Quem sabe uma súbita luz mostre aos dois extremos que suas atitudes radicais só prejudicam a maioria, que eles garantem defender e em nome da qual juram estar agindo.

Quem sabe surja a consciência de que, através da violência, da prepotência e do crime, o que estão conseguindo, atualmente, é apenas ferir a própria nacionalidade e enfraquecer o país perante a comunidade internacional. Quem sabe. Isto tardou um pouco, mas aconteceu, nas Filipinas de Ferdinand Marcos. Demorou um pouco mais, mas se verificou, no Haiti dos Duvaliers. Pode tardar ainda um certo tempo, mas certamente irá ocorrer no Chile de Pinochet.

(Artigo publicado na página 12, Internacional, do Correio Popular, em 2 de abril de 1987).


Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk 

No comments: