Wednesday, May 14, 2014

Indissociável parceiro de literatura

Pedro J. Bondaczuk

A leitura obrigatória é uma coisa tão absurda quanto se falar em felicidade obrigatória”. Quem escreveu isso foi um dos meus escritores favoritos, uma espécie de guru da minha geração, meu parâmetro de qualidade quando me dedico à atividade que tanto me encanta e mobiliza. Refiro-me, e o leitor sagaz certamente já chegou a essa conclusão, a Jorge Luís Borges. Ler tem que ser algo espontâneo, atrativo e, sobretudo, prazeroso. Não deve e não pode, portanto, ser imposto como dever, como tarefa, em suma, como obrigação. O que temos que fazer é motivar as crianças (ou mesmo adultos recém alfabetizados)  para empreenderem essa aventura do espírito por sua própria e livre vontade. Cada qual deve descobrir, por si mesmo, o prazer que essa nobre atividade do espírito encerra.

O leitor, meus amigos, é personagem central da Literatura. É figura imprescindível, tanto quanto a do escritor, de quem é indissociável parceiro. Um não sobrevive sem o outro. Claro que aqui me refiro em termos genéricos, sem particularizar a questão. Em casos específicos, porém, posso prescindir de “determinados leitores”, caso conte com uma infinidade de outros (e quantos mais, melhor). Contudo, não posso dispensar a “todos”. Caso contrário, será inútil que me disponha a escrever sem que haja quem leia o que escrevi, mesmo que para discordar das minhas colocações ou para criticar minhas ideias. A recíproca é rigorosamente verdadeira. Determinadas pessoas podem passar muito bem sem os meus livros e os meus textos esparsos, pois contará com milhões de outros tantos literatos mundo e tempo afora, que sejam do seu agrado, para suprir, não raro com vantagem, minha ausência.

O universo dos leitores é infinitamente mais vasto do que o dos escritores, embora a produção destes seja tão vasta (estima-se entre 50 milhões e 80 milhões de títulos de livros publicados, anualmente, embora estas cifras possam ser muito maiores) que ninguém, em momento algum, se verá privado do que ler. Caso seja, não o será por falta de produção, como se vê. Muito pelo contrário. Pode privar-se por outros motivos, como o econômico, por exemplo. Não, porém, por falta de opções. Ademais, todo escritor é, necessariamente, compulsivo leitor. Neste caso, ressalte-se, nem sempre a recíproca é verdadeira. Relativamente poucos consumidores de livros são, simultaneamente, seus produtores. Em outras palavras, um leitor não é necessariamente um escritor, ou por falta de talento, ou por não gostar de redação, ou por tantos e tantos outros motivos.

Jorge Luís Borges destacou a propósito: “Sem leitura, não se pode escrever”. Não, pelo menos, textos válidos, lúcidos e minimamente coerentes. Vários escritores consagrados confessaram-se obsessivos leitores. Pudera! Um deles, por exemplo, foi José Saramago, o primeiro autor de língua portuguesa a conquistar um Prêmio Nobel de Literatura. Ele escreveu a respeito: “Eu fui um leitor apaixonado. Não havia livros em minha casa, mas costumava ler bastante nas bibliotecas públicas, especialmente à noite. Lembro-me de ler a tradução do ‘Paraíso perdido’, quando tinha 16 anos. Não havia ninguém que me dissesse o que experimentar a seguir. Por isso tive uma educação literária anárquica cheia de lacunas, mas com o tempo consegui organizar uma espécie de visão coerente da literatura, especialmente da literatura francesa”.

Poucos escritores trataram com mais detalhes, esmiuçando as várias facetas e motivações, desse personagem que tanto tememos, por ser uma espécie de árbitro da nossa produção, mas que simultaneamente ambicionamos cativar, conquistar e “fidelizar” (neologismo que detesto, mas que aqui cabe a caráter) quanto o argentino Ricardo Piglia. Um de seus livros de maior sucesso tem por título “Último leitor”. Além disso, escreveu inúmeros ensaios a propósito e concedeu diversas entrevistas abordando essa figura geralmente “sem rosto” (na maior parte dos casos, salvo raríssimas exceções, não temos como identificar quem nos lê. E quanto à sua quantidade, não temos sequer como estimar, com razoável margem, de acerto, quantos são nossos leitores).

Piglia escreveu, na página 24 do citado livro: “”Não nos perguntaremos tanto o que é ler, como quem é aquele que lê (onde está lendo, para quê, em que condições, qual é a sua história?)”. E aduziu, na página 25: “Para poder definir o leitor, diria Macedonio, primeiro é preciso saber encontrá-lo. Ou seja, nomeá-lo, individualizá-lo, contar sua história. A literatura faz isso: dá ao leitor um nome e uma história, retira-o da prática múltipla e anônima, torna-o visível num contexto preciso, faz com que passe a ser integrante de uma narração específica”.

E como o escritor faz isso? Aleatoriamente. Na obra que produz, que pode agradar uns e desagradar outros.  Marcel Proust, em “O tempo redescoberto”, explica o que ocorre quando o livro agrada: “Na realidade, todo leitor é, quando lê, o leitor de si mesmo. A obra não passa de uma espécie de instrumento ótico oferecido ao leitor a fim de lhe ser possível discernir o que, sem ela, não teria certamente visto em si mesmo”. Ou seja, quando o livro agrada quem o lê, serve como uma espécie de microscópio em que esse leitor “se vê” interiormente e em detalhes. Acho fascinante esse tema, que há muito planejava abordar, e, por isso, pretendo trazê-lo de novo à baila, com enfoques mais detalhados e específicos, já nos próximos dias.

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