Quando
se duvida do homem
Pedro J. Bondaczuk
A figura hedionda do torturador –
de triste lembrança no Brasil até tempos relativamente recentes – que se
julgava em vias de extinção com os progressos verificados no campo do Direito
e, principalmente, com o avanço dos
meios de comunicação, denunciando as arbitrariedades cometidas, continua sendo
sinistra realidade. Não ostensivamente, já que a legislação se propõe a punir
quem aja dessa maneira, pelo menos entre nós. Talvez não haja mais torturadores
no Brasil, embora eu não ponha minha mão no fogo. Mas essa figura sinistra,
hedionda e cruel ainda é onipresente em muitas partes do mundo.
Nunca, em tempo algum, se falou
tanto sobre direitos humanos. Contudo, em raros períodos da história dos povos
eles foram tão desrespeitados, como têm sido agora. Esse conceito, aliás, é
propositalmente deturpado por alguns, para justificar seu desrespeito a
pretexto de ser “necessário para a proteção das pessoas de bem”. Inocentes
úteis, pessoas broncas incapazes de raciocinar por si próprias, volta e meia
dão entrevistas em que expressam a opinião de que “direitos humanos se destinam
a proteger bandidos para que não sejam devidamente punidos pelas atrocidades
que cometem”. Óbvio que não se trata disso. Não têm nada a ver com marginais e
com marginalidade Contudo, muito desavisado por aí firma convicção que seja
essa a finalidade dos direitos humanos.
É justificável e compreensível a
ira, que ainda hoje desperta, a lembrança das atrocidades cometidas pelos
nazistas, nos campos de concentração, durante os anos da Segunda Guerra
Mundial. Poucas vezes se falou tanto de Auschwitz, Birkennau, Bergen-Belsen e
Treblinka, entre outros lugares sinistros e aterradores em que a vida não tinha
o menor valor. Mas poucos, pouquíssimos denunciam, por exemplo, o que ocorre
hoje, talvez neste exato instante, nos subterrâneos de inúmeros presídios,
mundo afora, como se ninguém mais fosse torturado por causa de suas idéias e
convicções. Citam-se, com razão, os temíveis “Tonton Macoutes” do Haiti como
cruéis torturadores. Omitem-se, todavia, tantos outros, ao redor do mundo, que
espancam, humilham e não raro matam a pancadas suas indefesas vítimas. Não é
apenas lamentável (e criminoso) que prisioneiros políticos ainda sejam
torturados. É inconcebível que eles ainda existam, e em países que querem posar
de “democráticos”!
Não se admite que um homem seja
preso apenas porque comete o “crime” de pensar! Porque é através da razão –
que, aliás, é o que o diferencia dos irracionais (e, portanto, é seu distintivo)
– que ele pode discordar de atitudes atrabiliárias dos poderosos. Ou se rebelar
contra leis iníquas, elaboradas em seu nome, mas que são ditadas ao talante de
ditadores insensíveis ou de políticos espertalhões. Admitindo-se, porém, apenas
por hipótese, que a prisão política seja necessária, como forma de autodefesa
do Estado contra os que atentem contra sua existência (o que é inadmissível),
não se concebe que a um homem, privado do bem mais precioso de todo o ser
vivente, sua liberdade, seja, ainda, acrescentada a punição da sua degradação.
Que a sua pessoa seja desrespeitada, achincalhada, conspurcada por alguém que,
este sim, mereceria, pela sua índole violenta, ser segregado do convívio
social: o torturador.
Em pelo menos um terço dos países
da comunidade internacional ainda se pratica a tortura regular contra
prisioneiros políticos. Os norte-americanos, por exemplo, torturaram,
comprovadamente, prisioneiros no Iraque, no Afeganistão e em Guantanamo,
enclave dos EUA no território de Cuba e não importa a qual pretexto. Ademais,
basta ler os relatórios mensais emitidos pela Anistia Internacional para se ter
um panorama do desrespeito aos direitos humanos e da prática de tortura,
através do mundo. Deduz-se que em cerca de 50 países (e o número, provavelmente,
é muito maior) o direito de pensar não existe. Seus infelizes habitantes têm
necessidade, até como forma de autopreservação, de se manterem alienados,
perpetuando o predomínio dos tiranos e dos canalhas.
A ninguém assiste o direito de
oprimir, de humilhar, de enxovalhar pessoas dignas. E, pior ainda, é
inadmissível que esses homens sofram torturas de qualquer espécie por causa das
convicções que têm. Nenhum ser humano pode ser privado de sua liberdade por
aquilo que pensa, enquanto, pelo menos, seu pensamento não for traduzido em
alguma ação delituosa que atente contra as leis e principalmente contra os
direitos dos semelhantes. Como bem esclarece o mestre Miguel Reale, no seu
livro “Horizontes do Direito e da História”, com a propriedade dos sábios:
“Para o homem moderno, a liberdade é um valor que necessariamente se inclui no
‘dever ser’ da personalidade. A concepção universal de liberdade é uma
expressão do conceito universal de pessoa, pela consciência de que cada ser
humano é precioso em si mesmo”.
A “Declaração Universal dos
Direitos Humanos” foi firmada, solenemente, em 10 de dezembro de 1948, por
todos os membros das Nações Unidas. Não pode e não deve, pois, ser tratada como
“peça literária” de ficção, como letra morta, como mera manifestação de intenções sem nenhum efeito prático, como
simples arremedo de civilidade por parte dos países signatários. Se não há
respeito nas sociedades nacionais para com seus próprios integrantes, se os
indivíduos que se auto-atribuem poderes até divinos, humilham, massacram,
matam, furtam e privam a liberdade de seus semelhantes, o que esperar de um
relacionamento internacional?
Como acreditar que um sujeito que
aterroriza, digamos, a própria mulher e filhos em seu lar, possa ser gentil,
piedoso e íntegro no relacionamento com estranhos? É muito difícil, senão
impossível, que isso ocorra, não é mesmo? “O lobo perde o pêlo, mas não perde o
vício”. O poderoso que é violento em relação a seus irmãos de nacionalidade,
será tarado homicida quando tratar com alguém de outra comunidade, que não a
sua. Com isso, os mesmos erros que conduziram civilizações inteiras à extinção
se repetem, agora em maiores proporções, por afetarem muito mais pessoas. Os
mesmos déspotas tirânicos, ávidos por sangue e sofrimento, que do alto do seu
sadismo ditavam normas de vida ou morte às multidões, sobrevivem hoje,
travestidos de líderes políticos, de salvadores da pátria, de tutores
nacionais.
O homem, em dez mil anos de
civilização, conheceu avanços notáveis no campo das Ciências Exatas, da Física,
da Química, da Biologia e de outras disciplinas, que tornaram mais fácil e
confortável a vida. Entretanto, no tocante à convivência com os semelhantes,
ainda está a mil anos-luz de atraso em relação aos tempos que vivemos. O ser
humano, em geral, ainda tem dificuldades para entender que é efêmero e
transitório e que deste mundo nada leva ao morrer, mas apenas deixa: atos,
obras, pensamentos, realizações e permanentes ideais, que sobrevivem à própria
efemeridade do homem.
Alguns legam à posteridade tantas
e tão preciosas contribuições, que findam por se tornar alvos de permanente
respeito e reverência. Outros, entretanto, quando baixam à tumba, terminam por
receber um sinal da cruz apressado e supersticioso à simples menção de seus
nomes, exorcizados “ad perpetuum” por tudo o quanto de mal representaram como
paradigmas do lado ruim existente no animal “homo sapiens”.
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