Wednesday, May 28, 2014

Raul Alfonsin revela-se um estadista


Pedro J. Bondaczuk


O presidente argentino, Raul Alfonsin, mostrou, com sua atuação serena e equilibrada durante as duas recentes crises militares que a Argentina viveu, desde a última quinta-feira, porque é uma figura tão respeitada no âmbito internacional.

Com uma invejável habilidade política e uma serenidade digna do estadista que mostrou ser, soube como pôr fim às rebeliões verificadas em Córdoba e no Campo de Maio e acabou colhendo os frutos preciosos, em termos de apoio, à sua ação à frente da Presidência, inclusive (e principalmente) na oposição peronista, através da poderosa Confederação Geral dos Trabalhadores, de Saul Ubaldini.

Ao mesmo tempo, não cedeu aos revoltosos, não fazendo qualquer espécie de barganha para que estes depusessem as armas, determinando que eles fossem punidos de conformidade com o código militar a que estão sujeitos e a cujo regulamento infringiram.

Fez isso, porém, sem causar divisões nas Forças Armadas, ao retardar uma retomada, mediante o uso da violência, da unidade rebelada, que poderia ter sido sangrenta e que a longo prazo tenderia a trazer seqüelas, tais como ressentimentos, que fatalmente iriam desembocar em novas confrontações.

Há quem argumente que o fato do presidente ter aceitado a renúncia do comandante do Exército, general Hector Rios Erenu, foi uma concessão aos amotinados, já que essa era uma das principais exigências que eles estavam fazendo.

Mas essa demissão não deve ser encarada por este prisma. O oficial em questão, após o episódio, ficou desmoralizado perante os seus pares. Afinal, o ato de insubordinação ocorreu em sua Arma e ele não conseguiu contornar a situação sem que o caso viesse à luz da opinião pública e despertasse a repulsa popular que despertou.

Não foi capaz, portanto, de impor a sua autoridade, mostrando que já não contava com o respaldo de seus próprios comandados. Numa circunstância dessas, o melhor que poderia fazer seria aquilo que de fato fez. Ou seja, deixar o comando para evitar males ainda maiores.

Por outro lado, a admiração que o povo argentino sentia por seu presidente deve ter aumentado bastante, face ao seu ato de coragem, ao se deslocar para o Campo de Maio para intimar, pessoalmente, os rebeldes à rendição.

É verdade que o líder do motim, tenente-coronel Aldo Rico, deixou bem claro que o movimento que encabeçou não visava à deposição do governo legalmente constituído e, o que é mais importante, escolhido livre e soberanamente, em eleições diretas, caracterizadas pela lisura e pela transparência.

Garantiu que o seu gesto tinha um caráter interno, castrense, envolvendo questões puramente militares. Nada impedia, porém, que ao se ver perdido, tentasse, por exemplo, alguma ação desesperada, como a acontecida na Bolívia em junho de 1985, quando o presidente Siles Zuazo foi seqüestrado. Ou como a verificada em fevereiro passado, ocasião em que o equatoriano Leon Febres Cordero, além de ser mantido refém durante horas por militares rebelados, chegou a ser agredido e ameaçado de morte.

Alfonsin, entretanto, não se atemorizou com uma possibilidade desse tipo, se é que ela chegou a lhe passar pela cabeça. Com a mente limpa e o coração aberto, dirigiu-se para o Campo de Maio disposto a evitar o pior. Ou seja, um inútil derramamento de sangue entre os militares de seu país, cuja grandeza e respeitabilidade sempre desejou restaurar, ao livrar a corporação daqueles que não souberam honrar a gloriosa farda que vestiam, ao se excederem em atos que contrariam a qualquer lógica (eles existem para defender a população do país e não para atentar contra ela, como fizeram no período da ditadura) e a qualquer foro de humanidade e até de civilização.

Como presidente, Alfonsin não seria tolo de desejar o enfraquecimento ou o desprestígio, ou mesmo a divisão, das Forças Armadas, das quais é, constitucionalmente, o chefe maior. Sabe o quanto a classe é importante para a defesa da pátria e da manutenção da sua unidade.

Que os rebeldes sejam punidos, é até uma exigência da própria função que exercem, que se baseia na disciplina e no respeito à hierarquia. Mas a punição, certamente, não haverá de ser política ou ter qualquer conotação de revanche. Será um ato castrense normal, indolor e rotineiro em situações dessa natureza.

A Argentina, e os demais Estados que com ela se relacionam, sabem, agora, sem sombras de dúvidas, que o país dispõe de um líder que merece a designação, sereno, comedido, mas de pulso firme. E mais do que isso: Alfonsin mostrou, da forma com que equacionou essa perigosa crise, que é um dos raros estadistas que a América Latina já teve em seus menos de 200 anos de vida independente. Até que enfim a democracia sobrepujou o obscurantismo e o arbítrio neste nosso conturbado continente!

(Artigo publicado na página 10, Internacional, do Correio Popular, em 21 de abril de 1987).


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