Monday, May 26, 2014

Processo de Contadora ameaçado


Pedro J. Bondaczuk


A atuação do Grupo de Contadora na América Central (neutralizada sistematicamente pelo governo do presidente norte-americano Ronald Reagan, que luta desde 1981 para desestabilizar o regime sandinista da Nicarágua) poderá fracassar totalmente diante de um incidente tolo, onde se percebe claramente o “dedo” da Casa Branca.

A Costa Rica acusa o governo de Manágua de ter violado a sua embaixada, ao retirar, à força, em outubro do ano passado, um desertor nicaragüense, que teria se asilado naquela sede diplomática. E usou esse incidente para não comparecer (e o que é pior, convencer El Salvador e Honduras a imitar sua atitude) a uma reunião do Grupo de Contadora, marcada para esta semana no Panamá.

No que isso implica?, perguntaria o leitor arguto. Quem responde é o ex-presidente venezuelano, Carlos Andres Perez: “Não existem palavras para se referir à gravidade da situação na América Central se o Grupo de Contadora fracassar em suas gestões. Sem Contadora, não se poderá deter a guerra que vemos se aproximar a cada dia”.

E esse magnífico político, reconhecidamente um defensor intransigente dos direitos humanos, sabe o que está falando. Afinal, foi um dos inspiradores do Grupo, composto por Venezuela, Colômbia, México e Panamá, que deve o seu nome por ter se reunido pela primeira vez na ilha panamenha de Contadora (célebre por ter  acolhido o deposto xá do Irã, Rhezza Pahlevi, em 1979, quando este teve que abandonar o seu refúgio em Cuernavaca, no México).

Ao processo de paz desses quatro países se deve a relativa estabilidade na América Central. Não fora sua atuação, e esse continente miserável, uma autêntica “panela de pressão” de descontentamentos, gerados por profundas injustiças sociais, estaria inteiramente conflagrado por uma guerra suicida.

No recente relatório sobre a situação dos direitos humanos no mundo, elaborado pelo Departamento de Estado dos EUA, e encaminhado nesta semana ao Congresso norte-americano, o regime sandinista é pintado com as cores mais negras possíveis. Mas o documento não aponta, para respaldar as opiniões dos seus autores, prisões políticas e nem torturas na Nicarágua.

Ressalta a perseguição movida contra opositores e a censura à imprensa. Embora este tipo de atitude seja também reprovável, não é tanto quanto os morticínios indiscriminados movidos contra a população civil em El Salvador, país tratado com muita condescendência no relatório, já que seu regime é reconhecidamente mantido às custas de muitos dólares pela Casa Branca.

Ainda se Reagan estivesse apoiando uma oposição democrática para suceder os sandinistas, embora o crítico não concordasse com essa intolerável interferência nos assuntos internos de outro país, seria capaz de aceitar. Mas quem são os libertadores que Washington deseja impor aos nicaragüenses? São os adeptos do ex-ditador Somoza!

A Nicarágua, nas vésperas do Natal de 1972 (mais especificamente, em 23 de dezembro desse ano) foi atingida por uma sucessão de terremotos, que mataram dez mil pessoas, feriram 15 mil e deixaram metade da população de Manágua desabrigada.

O jornalista Pino Cimó, um italiano que trabalhava para o jornal “Il Messagero”, esteve lá, na ocasião. Na época o mundo todo se mobilizou para socorrer a Nicarágua. Inclusive em Campinas foi feita uma gigantesca campanha de arrecadação de donativos para os nicaragüenses. E sabem qual foi o destino dessa ajuda, dado pelo ditador Somoza e seus asseclas?

O jornalista narra: “...A Guarda está vendendo a preços decuplicados o arroz e as batatas que chegam nos aviões da Cruz Vermelha... No dia seguinte pudemos ver os soldados de Somoza venderem, a peso de ouro, cobertores, remédios, batatas e latarias vindas de todas as partes do mundo. Vimos soldados carregando nas camionetas geladeiras e televisores das grandes lojas abandonadas”.

Esses são os “democratas” que Reagan deseja impor aos nicaragüenses, não medindo esforços e nem despesas para essa tarefa, sabotando, até mesmo, a atuação do Grupo de Contadora. Esse foi o destino dado na época à generosidade mundial (talvez até mesmo ao seu donativo, caro leitor), pelos que posam agora de “anjinhos inocentes”, de guardiões da democracia.

Nós não morremos, particularmente, de amores por regimes extremistas, quer de esquerda, quer de direita. Mas, francamente, impor a um país dirigentes que compactuaram com tamanha bandalheira, testemunha por gente de todas as partes do mundo, não condiz com os reconhecidos foros de civilidade e de respeito ao próximo desse grande povo, que é o norte-americano! Ou será que a liberdade é boa apenas para os Estados Unidos?!

(Artigo publicado na página 2, Opinião, do Correio Popular, em 17 de fevereiro de 1985).

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