Thursday, May 29, 2014

Caminho da sabedoria

Pedro J. Bondaczuk

A dúvida é o princípio da sabedoria”. Essa constatação, aparentemente simples, foi feita há muito tempo, na Grécia antiga, por um homem hoje reconhecido, quase que consensualmente, como “sábio” Na verdade, ele não se considerava como tal. Refiro-me ao filósofo Aristóteles, cujas idéias são tão valiosas que, mesmo passados milênios da sua morte, ainda constituem o fundamento e principal arcabouço do “edifício” da Filosofia contemporânea. Não é atitude sábia, convenhamos, aceitar o que quer que seja aprioristicamente, apenas porque alguém o “disse”, ou escreveu, sem duvidar, em momento algum, dessa afirmação, ou constatação, ou conclusão, quando não mera especulação. Esta, no entanto, é nossa tendência, até por questão de comodismo.

É mister que não se confunda sabedoria com acúmulo de informação, com cultura, com assimilação de conhecimentos, digamos, “enciclopédicos”, quer por leitura, quer por se freqüentar bancos escolares nos mais diversos níveis. Para ser sábio, não é necessário que o indivíduo seja sequer letrado. Aliás, há muitos que nem mesmo sabem ler e escrever e, ainda assim, ostentam essa condição. É necessário enxergar além das aparências, ter raciocínio lógico e disposição para testar todo o conhecimento estatuído. E, para isso, se faz indispensável utilizar o “instrumento” deflagrador do processo de raciocínio proposto por Aristóteles: a dúvida.

Certamente não conseguiremos eliminar todos os pontos obscuros, intrigantes e duvidosos com que toparmos, os transformando, num passe de mágica, em convicções, em coisas comprovadas, em certezas. Ninguém jamais conseguiu essa façanha. Duvido que alguém o consiga. Por que? Pela complexidade deste mistério que é a vida. Em virtude do mistério de tudo o que nos cerca, principalmente de nós mesmos, neste universo indimensionável, possivelmente infinito, em que um dia fomos lançados, sem sabermos sequer com que finalidade, se é que exista alguma.      

“Quer dizer, então, que a sabedoria nos é inacessível?”, pode perguntar o aflito leitor. Não foi  o que eu escrevi.Todos nós temos, em algum momento da vida, súbito “lampejo” dela. E esse inesperado raio de luz varia, em intensidade e duração, de pessoa para pessoa. Alguns se esmeram em buscar detalhes dessa centelha divina. Desenvolvem, por exemplo, o hábito da meditação. Questionam, estudam, pesquisam, perquirem e lêem (caso saibam ler). E... se tornam sábios, ou se aproximam dessa condição.

A maioria, porém, fica comodamente à espera de novos lampejos. Às vezes eles se repetem mesmo, porém são raras e incertas essas repetições. Na maioria das vezes, eles acabam por não se manifestar jamais. Dessa forma, por comodismo, preguiça, incúria, entre outras coisas, essas pessoas perdem a oportunidade, para elas única, de chegar à fonte da sabedoria. Ressalte-se, reitero, que saber não implica, necessariamente, em conhecer, embora seja o princípio do conhecimento. Trata-se da informação bruta sobre um fato, conceito ou  coisa, sem o devido detalhamento.

Só o estudo, a meditação, o raciocínio e a leitura (desejável, mas não indispensável) nos levam à plenitude do conhecimento, em princípio acessível a todos, mas que poucos, pouquíssimos conseguem obter. O marco inicial do longuíssimo caminho que, se trilhado, nos levará à sabedoria, está em nós mesmos, no autoconhecimento. Como Sócrates acentuou, através de Platão, que foi seu porta-voz, “sábio é aquele que conhece os limites da própria ignorância”. Quantos são os que conhecem? E mesmo que conheçam intuitivamente, quantos os admitem? Essa relutância, ou mesmo resistência na admissão tende a ter várias causas, entre as quais a mais comum e freqüente é a vaidade. Mas como poderemos saber alguma coisa se não admitirmos que a desconhecemos? Se acharmos que temos o domínio de algo que na verdade não temos?

Não raro, nos apegamos fanaticamente a dogmas, que colhemos alhures, agindo como se fossem verdades inquestionáveis. E se não forem? Quase nunca são. Deixamos de exercer o princípio elementar, proposto por Aristóteles, para termos ao menos alguma chance, por mínima que seja, de ao menos nos aproximarmos da sabedoria: a dúvida. Relutamos em questionar. Tememos os questionamentos por receio de descobrir coisas a nosso respeito que nos desagradarão e decepcionarão. Mas são justamente elas que deveríamos nos empenhar em detectar. Só é possível tratar de alguma doença se esta for identificada, mediante diagnóstico preciso e inquestionável. Da mesma forma, somente podemos começar a eliminar nossa ignorância se nos dispusermos a delimitá-la, para só então procurar eliminá-la.  


O ensaísta norte-americano Henry David Thoreau, um dos meus preferidos pela profundidade de suas reflexões, observou, num dos seus mais famosos ensaios, constantes do livro “Desobedecendo”: “A sabedoria não chega aos espíritos em detalhes; ela viaja nos lampejos da luz celeste”. O que essas centelhas podem nos fornecer e que, de vez em quando, nos fornecem, são meras “pistas” do longuíssimo caminho que poderemos trilhar caso aspiremos ser, de fato, sábios. Antes de segui-las, porém, cabe-nos delimitar a extensão da nossa ignorância e utilizarmos com perícia e precisão a ferramenta da dúvida, sugerida por Aristóteles

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