Memória seletiva
Pedro
J. Bondaczuk
Os fatos são
caprichosos (há quem os considere “subversivos”). Todo jornalista sabe disso.
Não são pautados pelos que trabalham com eles, pautam-nos. Ocorrem à revelia
dos encarregados de noticiá-los ou comentá-los, não importa. E é esse
“capricho” que me leva a interromper, momentaneamente, meus comentários sobre a
vida e a obra dessa figura fascinante, e intrigante, que foi a escritora
inglesa, Virgínia Woolf. Mas não se preocupem. A interrupção é somente por
hoje. E é motivada pela necessidade de fazer pelo menos o registro de dois
eventos quentíssimos, que comentarei, com mais vagar, em outra ocasião.
Um deles é o centenário
de nascimento de um dos maiores cantores e compositores brasileiros de todos os
tempos, ocorrido ontem, 30 de abril de 2014. Refiro-me ao baiano, ao
baianíssimo Dorival Caymmi. Se comentei sua morte, ocorrida em 30 de agosto de
2008, nada mais natural e lógico que, pelo menos, registre os cem anos da sua
vinda ao mundo. Os comentários a propósito proponho-me a fazer em ocasião mais
oportuna. Não poderia, porém, deixar de registrar esse centenário.
Outro fato que requer
registro é o que se refere à morte de Ayrton Senna, ocorrida em um domingo de
1° de maio de 1994. Há, portanto, vinte anos. Já?! Puxa, como o tempo passa!
Creio que não haja praticamente nenhum brasileiro, pelo menos dos que residam
em áreas urbanas (que nem precisam ser tão populosas) com idade por volta dos
trinta anos (talvez até menos), que não tenha tomado ciência, na ocasião, desse
trágico acontecimento. Houve comoção generalizada, País afora. Provavelmente,
apenas os moradores que viviam (ou sobreviviam) nos grotões mais distantes e
esquecidos deste Brasil de dimensões continentais, não souberam o que
aconteceu. E, mesmo assim, tenho lá minhas dúvidas.
Lembro-me, como se
fosse hoje, daquele 1° de maio de 1994. Como poderia esquecer? Por cair num
domingo, folguei nesse dia das minhas tarefas de editor do jornal Correio
Popular de Campinas. Caísse durante a semana, mesmo sendo feriado,
provavelmente não folgaria. Tínhamos um sábado e um domingo de folga por mês. E
aquele fim de semana foi um deles. Não fui escalado para o plantão, o que foi
enorme alívio, após catorze dias consecutivos de trabalho. Ufa!
Como sempre fazia nos
domingos em que folgava, após o café matinal, fiquei ligadíssimo na televisão,
que transmitiria mais um grande prêmio de Fórmula 1. Estava ficando “viciado”
nesse esporte, por causa das façanhas de Ayrton Senna. Antes dele, confesso,
não me interessava muito por ele, apesar de valorizar os feitos nas pistas de
um Emerson Fittipaldi e de um Nelson Piquet. Mas a paixão nacional, e também a
minha, era o desempenho ousado e competente do piloto paulista.
Naquele dia, foi
disputado o Grande Prêmio de San Marino, no circuito de Ímola, na Itália. Senna
havia mudado de escuderia naquele ano. Fora contratado pela Williams, e não
vinha tendo a mesma performance que tivera nas equipes anteriores. Ainda estava
se adaptando ao carro. Uma imagem que
nunca me saiu da retina foi a do piloto brasileiro, pensativo, no cockpit da
sua máquina, à espera do sinal de partida. Deu para notar um olhar perdido,
como se estivesse ausente não somente do autódromo, mas até do mundo. Seria
premonição do que ocorreria minutos depois? Vá se saber! Nunca ninguém saberá,
pois quem poderia revelar, não está mais vivo.
A corrida vinha se
transcorrendo normalmente e Senna não ocupava as primeiras posições. Foi
quando, em uma disputa com o futuro campeoníssimo Michael Schumacher, o piloto
brasileiro perdeu o controle do carro e chocou-se violentamente contra o
guard-rail. Soube-se, mais tarde, que uma peça defeituosa fora responsável pelo
desastre. O acidente ocorreu na perigosíssima curva Tamburello, que vitimara
tantos outros corredores, posto que sem gravidade extrema. Na hora da batida,
qualquer pessoa, minimamente observadora, perceberia que o acidente fora grave.
As câmeras de TV, em momento algum, mostraram o rosto de Senna, mesmo quando
resgatado e instalado no helicóptero, que o conduziria a um hospital das
proximidades. Era péssimo sinal.
As notícias foram
desencontradas o dia todo. Até que, no início da noite, veio a confirmação do
que ninguém gostaria que fosse verdade: Ayrton Senna não resistiu os ferimentos
e morreu. Essa informação caiu como uma bomba no País. Apesar de estar de
folga, fui convocado, por telefone, a escrever um artigo a respeito. Com
escassas informações a propósito da morte, limitei-me a resenhar a carreira
vitoriosa do herói nacional e a falta que certamente faria ao esporte
brasileiro. Só pude escrever uma crônica melhor elaborada no dia seguinte,
texto este publicado na edição de 3 de maio de 1994, intitulado “Maldição do
tetra”. Nele, comparei a perda de Senna, que buscava seu quarto título, com a
frustração de outros esportistas que buscavam idêntica façanha em outras
modalidades.
Estávamos às vésperas
da Copa do Mundo dos Estados Unidos, em que a Seleção Brasileira, desacreditada
pela crônica esportiva e pela torcida, buscaria quebrar um jejum de 24 anos sem
conquistas. A rigor, se a maldição existia, foi quebrada na oportunidade. Nossa
equipe desdobrou-se, fez das tripas coração e, declaradamente inspirada em
Ayrton Senna, conquistou o tão sonhado, posto que improvável, tetra.
Tornou-se uma espécie
de clichê a afirmação de que o “brasileiro é um, povo sem memória”. Discordo.
Trata-se de estúpida generalização que não condiz com a verdade. Não, pelo
menos, com toda ela. O que o brasileiro tem é memória seletiva. Lembra do que
acha que deva ser lembrado e com inusitada intensidade. Prova? Ora, é este 1°
de maio, que deixou de ser, para a imensa maioria, o “Dia do Trabalho”, para se
transformar no “Dia de Ayrton Senna”. A propósito, após a morte do nosso herói
das pistas perdi, por completo, todo o interesse que tinha pela Fórmula 1, que
hoje acho chatíssima e cujas transmissões nunca mais assisti.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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