Casta
de condenados
Pedro J. Bondaczuk
A imortalidade é uma das mais
antigas e recorrentes aspirações humanas, a despeito da sua rigorosa
impossibilidade. Suponho que tenha “nascido” concomitantemente com a descoberta
do primeiro homem de que era capaz de pensar e, principalmente, de que era
mortal. Esse desejo está explicitado em
praticamente todos os mitos antigos que remanesceram e chegaram até nós,
procedentes do remotíssimo passado, como é o caso, por exemplo, da “Epopeia de
Gilgamesh”, tida e havida como uma das primeiras obras literárias da História e
que data de meados do século XXII antes de Cristo. Essa antiguidade, ao
contrário de muitas coisas referentes aos nossos primitivos ancestrais, nem
chega a ser objeto de dúvidas e contestações.
Pode ser determinada, com enorme margem de acerto ou de aproximação,
pelo método do Carbono-14, que chega a ser quase infalível.
Quando me refiro à imortalidade,
não estou pensando naquela dos acadêmicos de letras (neste caso sou um deles),
e de tantas outras pessoas notáveis e operosas, por exemplo, que é a da memória
e da preservação das obras que legam à posteridade (que, ademais, é fantasiosa,
já que o próprio Planeta que habitamos não está a salvo da extinção, que
fatalmente ocorrerá, e que apenas não se sabe quando e como). Refiro-me à
física, à orgânica, à biológica. Esta, com base na experiência, é não apenas
inviável, ou eventualmente rara, mas absolutamente impossível. Pelo menos por
enquanto. Mas é desejável? Vejamos...
Aspiramos à eternidade, sim, (eu,
pelo menos, gostaria de viver para sempre, posto que nas condições
ideais), mas nossas pretensões esbarram inexoravelmente na realidade da
nossa pequenez e efemeridade. Alguns crêem que nossa presença na Terra é apenas
passagem, preparação, aprendizado para algo melhor e duradouro, em outra
condição desconhecida. Recuso-me a tratar dessa crença, por respeitar, sempre,
todas as formas de pensamento, mesmo que
não concorde com algumas ou com nenhuma delas. E neste caso prefiro calar-me
sobre se concordo ou discordo de tal possibilidade, suposição ou sei lá o que,
de existência de outra vida, posterior a esta, em condição incorpórea: etérea e imaterial.
Claro que tal crença é, apenas,
questão de fé. Não tem a mínima fundamentação em provas e, no caso, prescinde
delas. Milhões de pessoas mundo afora, por sua parte, acham que sua existência,
enquanto seres racionais, se extingue por completo com a extinção do corpo. E
que, se não aproveitarmos esta vida, não teremos outra para recuperar o tempo
perdido. Com quem está a razão? Com os que acreditam em eternidade, sem este
frágil invólucro de carne, ossos, sangue e vísceras que abriga nossa
consciência? Ou com os que crêem que a matéria é a única realidade e que, por
isso, ela não se cria e não se perde, mas apenas se transforma, como tudo na
natureza? E que apregoam que, o que chamamos de “alma”, é mera função biológica
do cérebro? Sei lá!
Cada qual tem crença a propósito,
de acordo com sua formação intelectual e espiritual e sua personalidade. Mas
certeza, certeza mesmo, ninguém tem (creio que jamais terá), nem a esse
respeito e nem a propósito de praticamente nada. Para uns, somos uma “casta de
condenados” à fatal extinção, ou à transformação, como ocorre com tudo na
natureza, sem deixar, no longo prazo, o mínimo vestígio da nossa passagem por
este recôndito e ínfimo recanto do universo. Para outros, somos eternos e
indestrutíveis, pelo menos no que diz respeito à nossa tão misteriosa essência
imaterial.
Há cientistas, sobretudo
biólogos, com conhecimento profundo do funcionamento orgânico e da sua decadência, do envelhecimento e
evolução celular, que acreditam sem
pestanejar que será possível, algum dia, deter essa degradação e proporcionar,
por conseqüência, a imortalidade biológica ao homem. É verdade que não sabem
como isso será possível, óbvio, pois caso soubessem, já teriam apresentado o
primeiro espécime da espécie completamente livre da morte. Da minha parte, não
creio que isso possa acontecer algum dia. Mas...
Os que acreditam nessa
possibilidade têm em mente a descoberta, em 2009, de uma espécie que, mediante
seleção natural, teria desenvolvido a aparentemente absurda capacidade de ser
imortal. Trata-se do “Turritopsis Nutricula”, um tipo de água viva, que não
morre nunca. Depois de se tornar adulto sexualmente maduro, esse ser, tido e
havido como potencialmente “eterno”, pode retornar, de novo à fase imatura (de
pólipo), pelo processo de conversão de células de transdiferenciação. Essa água
viva repete tal ciclo indefinidamente, o que significa que pode ter vida útil
indefinida.
Supondo que se trate mesmo de um
ser imortal, a pergunta é: que conseqüências essa suposta imortalidade traz
para o meio ambiente? No caso da “Turritopsis Nutricula” ela é óbvia. A espécie
vem se expandindo, como uma praga, a uma velocidade estonteante, espalhando-se
do seu habitat natural, a região do Caribe, para mares do mundo todo. No que
isso vai resultar, ainda é muito cedo para se saber. Mas, com certeza, não será
em nada de bom.
Uma questão se impõe. Se fosse
possível assegurar a imortalidade biológica ao ser humano (e muitos e muitos
cientistas, futurólogos e filósofos acham que essa possibilidade não somente
existe, mas que tende a se tornar real já neste século XXI, por volta da década
de 30) que consequências isso traria para o Planeta? Certamente, uma das
primeiras e mais visíveis seria intolerável e catastrófica superpopulação. Sem
a existência de imortais, a Terra já abriga mais de sete bilhões de habitantes.
E o número de “tripulantes” desta limitada nave cósmica vem se multiplicando
vertiginosamente, há pelo menos oito séculos, a despeito de sermos mortais, em
decorrência de simples avanços da medicina, da nutrição e dos cuidados de
higiene.
A população humana, apenas para
que o leitor tenha uma idéia da velocidade da sua multiplicação, dobrou em
1350. Já em 1700, quadruplicou, a despeito de doenças letais, hoje quase que
quase erradicadas e no mínimo controladas, e das péssimas condições sanitárias.
Atingiu o primeiro bilhão de habitantes somente em 1804. Dali em diante,
todavia, a coisa disparou, lembrando a multiplicação da água viva imortal. Em
somente 210 anos, a população da Terra ultrapassou os sete bilhões e segue se
multiplicando. E isso sem a possibilidade da imortalidade. Imaginem se fôssemos
imortais! Só de idosos, o Planeta já abriga um bilhão de indivíduos, o mesmo
tanto do total de habitantes de 1804, que já foi considerado um espanto na
ocasião!
E olhem que neste período de 210
anos, o mundo teve duas guerras mundiais, que resultaram em pelo menos 50
milhões de mortes; outras tantas regionais, com número de vítimas estimado em
mais 30 milhões; epidemias arrasadoras, como a de gripe espanhola que vitimou
alguns milhões mundo afora; além da fome crônica de quase um terço da
humanidade. A população do Planeta, contudo, não parou de aumentar o tempo
todo. E isso, reitero mais uma vez, sem a imortalidade.
O poeta paulista Y. Fujyama
encerra seu poema “Opus Zero” com estes versos instigantes, a propósito de
suposta vida eterna, do ponto de vista biológico:
“Que representaria o perpetuar-se
de um canto se a certeza do
eterno
bafejasse os seus passos? Oh!
Incerto,
trivial alimento de uma casta de
condenados!”
Sim, leitor, nossa espécie seria,
literalmente, uma “casta de condenados”. Se é que não o seja, a despeito da
mortalidade. O pai da psicanálise, Sigmund Freud, em carta que escreveu à filha
Anna, concluiu que “viver cansa”. Em mensagem dramática e comovente, confessou
que não apenas esperava a morte, como a desejava ardentemente. É verdade que
vinha sofrendo demais, afetado por um câncer, que findou por matá-lo. A
despeito disso, viveu ainda mais onze anos, sofrendo dores horríveis, até que a
morte lhe trouxesse alívio. Seria bom negócio para o homem, vivendo num planeta
tão pequeno e de tão escassos recursos, conquistar a tão sonhada imortalidade?
Pense nisso.
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