Saturday, May 03, 2014

Casta de condenados

Pedro J. Bondaczuk

A imortalidade é uma das mais antigas e recorrentes aspirações humanas, a despeito da sua rigorosa impossibilidade. Suponho que tenha “nascido” concomitantemente com a descoberta do primeiro homem de que era capaz de pensar e, principalmente, de que era mortal.  Esse desejo está explicitado em praticamente todos os mitos antigos que remanesceram e chegaram até nós, procedentes do remotíssimo passado, como é o caso, por exemplo, da “Epopeia de Gilgamesh”, tida e havida como uma das primeiras obras literárias da História e que data de meados do século XXII antes de Cristo. Essa antiguidade, ao contrário de muitas coisas referentes aos nossos primitivos ancestrais, nem chega a ser objeto de dúvidas e contestações.  Pode ser determinada, com enorme margem de acerto ou de aproximação, pelo método do Carbono-14, que chega a ser quase infalível.

Quando me refiro à imortalidade, não estou pensando naquela dos acadêmicos de letras (neste caso sou um deles), e de tantas outras pessoas notáveis e operosas, por exemplo, que é a da memória e da preservação das obras que legam à posteridade (que, ademais, é fantasiosa, já que o próprio Planeta que habitamos não está a salvo da extinção, que fatalmente ocorrerá, e que apenas não se sabe quando e como). Refiro-me à física, à orgânica, à biológica. Esta, com base na experiência, é não apenas inviável, ou eventualmente rara, mas absolutamente impossível. Pelo menos por enquanto. Mas é desejável? Vejamos...

Aspiramos à eternidade, sim, (eu, pelo menos, gostaria de viver para sempre, posto que nas condições ideais),  mas nossas pretensões  esbarram inexoravelmente na realidade da nossa pequenez e efemeridade. Alguns crêem que nossa presença na Terra é apenas passagem, preparação, aprendizado para algo melhor e duradouro, em outra condição desconhecida. Recuso-me a tratar dessa crença, por respeitar, sempre, todas as formas de pensamento,  mesmo que não concorde com algumas ou com nenhuma delas. E neste caso prefiro calar-me sobre se concordo ou discordo de tal possibilidade, suposição ou sei lá o que, de existência de outra vida, posterior a esta, em condição incorpórea:  etérea e imaterial.

Claro que tal crença é, apenas, questão de fé. Não tem a mínima fundamentação em provas e, no caso, prescinde delas. Milhões de pessoas mundo afora, por sua parte, acham que sua existência, enquanto seres racionais, se extingue por completo com a extinção do corpo. E que, se não aproveitarmos esta vida, não teremos outra para recuperar o tempo perdido. Com quem está a razão? Com os que acreditam em eternidade, sem este frágil invólucro de carne, ossos, sangue e vísceras que abriga nossa consciência? Ou com os que crêem que a matéria é a única realidade e que, por isso, ela não se cria e não se perde, mas apenas se transforma, como tudo na natureza? E que apregoam que, o que chamamos de “alma”, é mera função biológica do cérebro? Sei lá!

Cada qual tem crença a propósito, de acordo com sua formação intelectual e espiritual e sua personalidade. Mas certeza, certeza mesmo, ninguém tem (creio que jamais terá), nem a esse respeito e nem a propósito de praticamente nada. Para uns, somos uma “casta de condenados” à fatal extinção, ou à transformação, como ocorre com tudo na natureza, sem deixar, no longo prazo, o mínimo vestígio da nossa passagem por este recôndito e ínfimo recanto do universo. Para outros, somos eternos e indestrutíveis, pelo menos no que diz respeito à nossa tão misteriosa essência imaterial.

Há cientistas, sobretudo biólogos, com conhecimento profundo do funcionamento orgânico e  da sua decadência, do envelhecimento e evolução celular, que  acreditam sem pestanejar que será possível, algum dia, deter essa degradação e proporcionar, por conseqüência, a imortalidade biológica ao homem. É verdade que não sabem como isso será possível, óbvio, pois caso soubessem, já teriam apresentado o primeiro espécime da espécie completamente livre da morte. Da minha parte, não creio que isso possa acontecer algum dia. Mas...

Os que acreditam nessa possibilidade têm em mente a descoberta, em 2009, de uma espécie que, mediante seleção natural, teria desenvolvido a aparentemente absurda capacidade de ser imortal. Trata-se do “Turritopsis Nutricula”, um tipo de água viva, que não morre nunca. Depois de se tornar adulto sexualmente maduro, esse ser, tido e havido como potencialmente “eterno”, pode retornar, de novo à fase imatura (de pólipo), pelo processo de conversão de células de transdiferenciação. Essa água viva repete tal ciclo indefinidamente, o que significa que pode ter vida útil indefinida.

Supondo que se trate mesmo de um ser imortal, a pergunta é: que conseqüências essa suposta imortalidade traz para o meio ambiente? No caso da “Turritopsis Nutricula” ela é óbvia. A espécie vem se expandindo, como uma praga, a uma velocidade estonteante, espalhando-se do seu habitat natural, a região do Caribe, para mares do mundo todo. No que isso vai resultar, ainda é muito cedo para se saber. Mas, com certeza, não será em nada de bom.

Uma questão se impõe. Se fosse possível assegurar a imortalidade biológica ao ser humano (e muitos e muitos cientistas, futurólogos e filósofos acham que essa possibilidade não somente existe, mas que tende a se tornar real já neste século XXI, por volta da década de 30) que consequências isso traria para o Planeta? Certamente, uma das primeiras e mais visíveis seria intolerável e catastrófica superpopulação. Sem a existência de imortais, a Terra já abriga mais de sete bilhões de habitantes. E o número de “tripulantes” desta limitada nave cósmica vem se multiplicando vertiginosamente, há pelo menos oito séculos, a despeito de sermos mortais, em decorrência de simples avanços da medicina, da nutrição e dos cuidados de higiene.

A população humana, apenas para que o leitor tenha uma idéia da velocidade da sua multiplicação, dobrou em 1350. Já em 1700, quadruplicou, a despeito de doenças letais, hoje quase que quase erradicadas e no mínimo controladas, e das péssimas condições sanitárias. Atingiu o primeiro bilhão de habitantes somente em 1804. Dali em diante, todavia, a coisa disparou, lembrando a multiplicação da água viva imortal. Em somente 210 anos, a população da Terra ultrapassou os sete bilhões e segue se multiplicando. E isso sem a possibilidade da imortalidade. Imaginem se fôssemos imortais! Só de idosos, o Planeta já abriga um bilhão de indivíduos, o mesmo tanto do total de habitantes de 1804, que já foi considerado um espanto na ocasião!

E olhem que neste período de 210 anos, o mundo teve duas guerras mundiais, que resultaram em pelo menos 50 milhões de mortes; outras tantas regionais, com número de vítimas estimado em mais 30 milhões; epidemias arrasadoras, como a de gripe espanhola que vitimou alguns milhões mundo afora; além da fome crônica de quase um terço da humanidade. A população do Planeta, contudo, não parou de aumentar o tempo todo. E isso, reitero mais uma vez, sem a imortalidade.        

O poeta paulista Y. Fujyama encerra seu poema “Opus Zero” com estes versos instigantes, a propósito de suposta vida eterna, do ponto de vista biológico:

“Que representaria o perpetuar-se
de um canto se a certeza do eterno
bafejasse os seus passos? Oh! Incerto,
trivial alimento de uma casta de condenados!”

Sim, leitor, nossa espécie seria, literalmente, uma “casta de condenados”. Se é que não o seja, a despeito da mortalidade. O pai da psicanálise, Sigmund Freud, em carta que escreveu à filha Anna, concluiu que “viver cansa”. Em mensagem dramática e comovente, confessou que não apenas esperava a morte, como a desejava ardentemente. É verdade que vinha sofrendo demais, afetado por um câncer, que findou por matá-lo. A despeito disso, viveu ainda mais onze anos, sofrendo dores horríveis, até que a morte lhe trouxesse alívio. Seria bom negócio para o homem, vivendo num planeta tão pequeno e de tão escassos recursos, conquistar a tão sonhada imortalidade? Pense nisso.


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