Dois condores dos Andes
Pedro
J. Bondaczuk
Os poetas Gabriela
Mistral e Pablo Neruda estão entre os meus preferidos, tanto por razões óbvias
– ou seja, pela perfeição técnica de sua poesia e pela emoção que eles
transmitiram em seus versos mágicos e emotivos – quanto por motivos puramente
sentimentais, ligados diretamente à minha vida. Isso acontece com a maioria das
pessoas. Não é raro elegermos determinadas músicas, ou certos filmes, ou mesmo
um livro especial como sendo marcantes, por nos remeterem a algum momento
inesquecível que vivemos. Aliás, é um procedimento até bastante comum. É o caso
desses dois condores dos Andes para mim.
Coincidentemente,
fiquei conhecendo a obra de ambos quase que simultaneamente, no auge da
juventude, há exatos cinqüenta anos, quando eu era todo paixão. Ganhei livros
dos dois, e de uma mesma pessoa, de determinada namoradinha da ocasião, que
sabia do meu gosto por poesia e que tinha ciência, sobretudo, de que eu ousava,
até, “perpetrar” alguns versos, canhestros, é verdade, mas apaixonados,
fotografias de corpo inteiro do meu jeito de ser: impulsivo e exagerado. Mal eu
sabia, então, que muitos anos depois, outra ocorrência pessoal iria acentuar-me
ainda mais a importância de Pablo Neruda e de Gabriela Mistral em minha vida.
Ocorre que ambos eram chilenos e quis o feliz acaso que meu primeiro genro,
casado com minha filha mais velha, o Horácio Poblete, fosse dessa
nacionalidade. Vai daí...
Uniu-se, o útil ao
agradável. Esse parentesco propiciou-me, entre outras coisas boas, contar com
maior acesso a livros que eu não conhecia desses dois gênios do verso,
multiplicando, exponencialmente, minha veneração por ambos. Ao motivo
“técnico”, portanto, ou seja, ao da qualidade da poesia dos dois, veio se somar
novo fator sentimental (mais um), ao que já existia há bom tempo.
Meu genro teve a
generosidade de presentear-me com o volume “Desolacion”, de Gabriela Mistral, e
com “Os versos do capitão”, de Pablo Neruda, este numa caprichada edição
bilíngüe da Editora Bertrand Brasil. Creio ser desnecessário informar que ambos
se transformaram, desde então, em livros de cabeceira, de consulta praticamente
diária, junto com o “História Universal da Infâmia”, do meu guru literário,
Jorge Luís Borges. Delicio-me, com rigorosa constância, com os magníficos
poemas desses geniais artífices do verso.
Hoje, após a leitura de
trechos de livros de ambos, estive pensando em algumas coincidências existentes
entre a vida e a carreira literária deles (além da sua nacionalidade comum).
Tanto um quanto a outra, por exemplo, foram premiados com o Nobel de
Literatura. Ele ganhou-o em 1971. Ela, bem antes, em 1945. Ambos se consagraram
com pseudônimos, adotados em homenagem a outros escritores. O nome de batismo
de Pablo Neruda era Neftali Ricardo Reyes Basoalto. A forma como ficou
conhecido foi adotada para homenagear o poeta, contista e dramaturgo checo Jan
Neruda. Já Gabriela Mistral foi batizada como Lucila de Maria Del Perpetuo
Socorro Godoy Alcayaga. Seu pseudônimo foi uma fusão dos nomes do italiano
Gabriele D’Annunzio e do provençal Fréderic Mistral, aos quais, óbvio, apreciava.
Mas as coincidências
não param por aí. Os dois se tornaram conhecidos em seu país após participação
em Jogos Florais. Ela venceu os de Santiago, de 1914. Ele, não foi tão bem
sucedido. Ficou em terceiro lugar nos Jogos Florais de Maule em 1919. Os dois,
em algum momento de suas vidas, exerceram função diplomática, como cônsules.
Ele, em Rangum (Birmânia), em Madri e em algumas outras localidades. Ela foi
consulesa em várias cidades da Europa. Tanto uma, quanto o outro, cantaram o
amor, em todas suas formas de manifestação, com alma, garra e paixão. As
coincidências, todavia, param por aí.
A diferença de idade
entre os dois era de quinze anos. No exato ano em que Pablo nasceu (1904),
Gabriela assumiu sua primeira classe de alunos, como professorinha do interior,
que ela sempre se considerou, mesmo depois do Nobel e da consagração. Ela era
um tanto tímida, recatada e se sentia intimidada com a fama que obteve. Até
morrer, teve em mente apenas a missão de ensinar crianças, embora tenha
abandonado, a contragosto, o magistério, para se dedicar a várias outras
funções, nas quais, por sinal, se deu bem. Ele, por seu turno, era um ativista
político (foi senador), um revolucionário (envolveu-se, entre outras aventuras,
na Guerra Civil Espanhola), um comunista convicto e apaixonado até seus últimos
dias de vida. Acima de tudo, tinha o dom de mobilizar multidões.
Nesse aspecto, podem
ser citados dois episódios, inigualados por qualquer outro escritor, façanha,
aliás, rara até mesmo para popularíssimos astros do rock dos tempos atuais. O
primeiro ocorreu em 1945. Pablo Neruda mobilizou um público de mais de cem mil
pessoas, no Estádio Municipal do Pacaembu, em São Paulo (que nem mesmo na Copa
do Mundo de 1950 chegou sequer perto dessa superlotação), quando leu um de seus
inflamados poemas em homenagem ao líder comunista brasileiro Luiz Carlos
Prestes. Anos depois, em 1971, repetiu o feito, desta vez em seu país. É certo
que o fez para público menor, mas não muito. A convite de Salvador Allende (em
favor do qual abriu mão de sua candidatura à presidência do Chile, cargo para o
qual era favorito e certamente seria eleito), leu vários de seus poemas a
entusiástica multidão, após o anúncio de que havia conquistado o Nobel de
Literatura. Estiveram presentes ao evento mais de 70 mil pessoas, concentradas
no tristemente célebre Estádio Nacional de Santiago.
Estes são os poetas que
aprendi a admirar, e mais do que isso, a venerar, há já longos cinquenta anos.
Gabriela havia morrido quando entrei em contato com sua memorável poesia com o
livro presenteado pela tal namoradinha. Pablo, porém, seguiu vivo e produtivo
ainda por muitos anos mais. E, claro, fiquei profundamente consternado quando
soube, em 23 de setembro de 1973, que ele havia morrido, vítima de câncer de próstata. Recomendo ao
leitor que eventualmente não conheça a obra desses dois gênios das Américas que
leiam seus livros. Certamente entenderão porque lhes devoto tamanho apreço e
consideração.
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