Raul Alfonsin revela-se um estadista
Pedro J.
Bondaczuk
O presidente argentino, Raul Alfonsin, mostrou, com sua
atuação serena e equilibrada durante as duas recentes crises militares que a
Argentina viveu, desde a última quinta-feira, porque é uma figura tão
respeitada no âmbito internacional.
Com uma invejável habilidade
política e uma serenidade digna do estadista que mostrou ser, soube como pôr
fim às rebeliões verificadas em Córdoba e no Campo de Maio e acabou colhendo os
frutos preciosos, em termos de apoio, à sua ação à frente da Presidência,
inclusive (e principalmente) na oposição peronista, através da poderosa
Confederação Geral dos Trabalhadores, de Saul Ubaldini.
Ao mesmo tempo, não cedeu aos
revoltosos, não fazendo qualquer espécie de barganha para que estes depusessem
as armas, determinando que eles fossem punidos de conformidade com o código
militar a que estão sujeitos e a cujo regulamento infringiram.
Fez isso, porém, sem causar
divisões nas Forças Armadas, ao retardar uma retomada, mediante o uso da
violência, da unidade rebelada, que poderia ter sido sangrenta e que a longo
prazo tenderia a trazer seqüelas, tais como ressentimentos, que fatalmente
iriam desembocar em novas confrontações.
Há quem argumente que o fato do
presidente ter aceitado a renúncia do comandante do Exército, general Hector
Rios Erenu, foi uma concessão aos amotinados, já que essa era uma das
principais exigências que eles estavam fazendo.
Mas essa demissão não deve ser
encarada por este prisma. O oficial em questão, após o episódio, ficou
desmoralizado perante os seus pares. Afinal, o ato de insubordinação ocorreu em
sua Arma e ele não conseguiu contornar a situação sem que o caso viesse à luz
da opinião pública e despertasse a repulsa popular que despertou.
Não foi capaz, portanto, de impor
a sua autoridade, mostrando que já não contava com o respaldo de seus próprios
comandados. Numa circunstância dessas, o melhor que poderia fazer seria aquilo
que de fato fez. Ou seja, deixar o comando para evitar males ainda maiores.
Por outro lado, a admiração que o
povo argentino sentia por seu presidente deve ter aumentado bastante, face ao
seu ato de coragem, ao se deslocar para o Campo de Maio para intimar,
pessoalmente, os rebeldes à rendição.
É verdade que o líder do motim,
tenente-coronel Aldo Rico, deixou bem claro que o movimento que encabeçou não
visava à deposição do governo legalmente constituído e, o que é mais
importante, escolhido livre e soberanamente, em eleições diretas,
caracterizadas pela lisura e pela transparência.
Garantiu que o seu gesto tinha um
caráter interno, castrense, envolvendo questões puramente militares. Nada
impedia, porém, que ao se ver perdido, tentasse, por exemplo, alguma ação
desesperada, como a acontecida na Bolívia em junho de 1985, quando o presidente
Siles Zuazo foi seqüestrado. Ou como a verificada em fevereiro passado, ocasião
em que o equatoriano Leon Febres Cordero, além de ser mantido refém durante
horas por militares rebelados, chegou a ser agredido e ameaçado de morte.
Alfonsin, entretanto, não se
atemorizou com uma possibilidade desse tipo, se é que ela chegou a lhe passar
pela cabeça. Com a mente limpa e o coração aberto, dirigiu-se para o Campo de
Maio disposto a evitar o pior. Ou seja, um inútil derramamento de sangue entre
os militares de seu país, cuja grandeza e respeitabilidade sempre desejou
restaurar, ao livrar a corporação daqueles que não souberam honrar a gloriosa
farda que vestiam, ao se excederem em atos que contrariam a qualquer lógica
(eles existem para defender a população do país e não para atentar contra ela,
como fizeram no período da ditadura) e a qualquer foro de humanidade e até de
civilização.
Como presidente, Alfonsin não
seria tolo de desejar o enfraquecimento ou o desprestígio, ou mesmo a divisão,
das Forças Armadas, das quais é, constitucionalmente, o chefe maior. Sabe o
quanto a classe é importante para a defesa da pátria e da manutenção da sua
unidade.
Que os rebeldes sejam punidos, é
até uma exigência da própria função que exercem, que se baseia na disciplina e
no respeito à hierarquia. Mas a punição, certamente, não haverá de ser política
ou ter qualquer conotação de revanche. Será um ato castrense normal, indolor e
rotineiro em situações dessa natureza.
A Argentina, e os demais Estados
que com ela se relacionam, sabem, agora, sem sombras de dúvidas, que o país
dispõe de um líder que merece a designação, sereno, comedido, mas de pulso
firme. E mais do que isso: Alfonsin mostrou, da forma com que equacionou essa
perigosa crise, que é um dos raros estadistas que a América Latina já teve em
seus menos de 200 anos de vida independente. Até que enfim a democracia
sobrepujou o obscurantismo e o arbítrio neste nosso conturbado continente!
(Artigo publicado na página 10, Internacional, do Correio Popular, em 21
de abril de 1987).
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