Friday, April 04, 2014

Paciência que salva

Pedro J. Bondaczuk

O suicídio do comandante de um veleiro russo, Alexei Grevscenko, de 42 anos de idade – cujo corpo foi encontrado, enforcado e pendurado numa árvore num bosque do balneário uruguaio de Punta del Este, em 11 de outubro de 1989 – foi um  tema que, apesar de mórbido, me suscitou demorada meditação e um longo comentário em jornal na época em que ocorreu. Esse é um assunto tão delicado, que há. mesmo, uma espécie de pacto tácito e informal entre nós, jornalistas, para não tratar dele na imprensa, salvo uma ou outra exceção. São raros os casos desse tipo que ganham manchetes. E quando vêm a público, através dos meios de comunicação, envolvem quase sempre celebridades da política, dos esportes, do show business etc., que, por uma razão ou outra, dão cabo da vida. Afinal, o que leva determinadas pessoas – em geral bem sucedidas em suas atividades, sem problemas financeiros, com nível de instrução de razoável para bom – a optarem por esse trágico desfecho?

Que mecanismo emocional se desregula a tal ponto de levar o poderosíssimo instinto de sobrevivência (o erótico) a ser sobrepujado pelo de destruição (o tânico)? Os estudiosos do assunto dizem que, em geral, os que cometem esse ato de agressão extrema contra si próprios não querem, na verdade, morrer. O que desejam é chamar a atenção para seus problemas; para sua imensa solidão; para a carência afetiva que os domina; para seu enorme desamparo emocional e incontrolável desespero. Como nos tempos atuais as pessoas estão se isolando cada vez mais, se auto-encarcerando, se mantendo solitárias mesmo quando em meio a multidões, esses seres carentes e psicologicamente frágeis e vulneráveis encontram, cada vez mais, dificuldades para se fazerem ouvidos.

Seus obstáculos de relacionamento crescem dia a dia, na medida em que aumenta seu isolamento, a ponto de serem levados ao total desencanto e, em casos extremos, a atentarem, até, contra a própria vida. E pensar que na maioria das vezes uma boa conversa (e somente isso) os salvaria! Duvidam? Eu não! Até porque já tive a oportunidade (que reputo de privilégio) – no exercício diário de tentativa de diálogo com o maior número possível de pessoas, através das páginas do jornal em que era editor – de ter um caso dramático, desse tipo, pela frente e ter me saído bem.

Há algum tempo, coisa de vinte e cinco anos, ou mais, recebi, na redação do Correio Popular, um telefonema estranho, que a princípio pensei não passar de mais um trote, de mais uma das tantas brincadeiras de mau gosto a que os jornalistas e os que lidam diariamente com o público estão sujeitos, tão insólita era a conversa do interlocutor. O impulso inicial, lógico, foi igual ao de todos os que recebem ligações inoportunas, de galhofeiros irresponsáveis que se divertem brincando com coisas sérias. Ou seja, foi o de desligar, irritado, o aparelho, não sem antes dizer ao engraçadinho poucas e boas ou mesmo apenas um único, mas sonoro e ‘cabeludo’ palavrão, até para desestimular novas brincadeiras do tipo.

Uma espécie de intuição, no entanto, fez com que eu ouvisse até o fim aquilo tudo que a pessoa do outro lado da linha tentava dizer, de forma confusa e incoerente, como se estivesse alcoolizada ou drogada. Dava para perceber o desespero, a angústia e o estado de confusão mental do interlocutor. Para simular tudo isso, convenhamos, o sujeito teria que ser ator magnífico, mestre, ou mais, gênio dos palcos e das telas. Em suma, foi uma conversa longa, de mais de duas horas de duração, entremeada de choro e de ameaças constantes de dar cabo da vida no momento seguinte, por parte de quem estava do outro lado da linha (e do outro lado da razão, ao que parece).

O começo, reitero, foi muito confuso. Mal dava para entender o que essa pessoa tentava dizer. Ela afirmava, sobretudo, e reiterava a todo o momento, como se fosse um disco quebrado, que a vida era uma droga, que não tinha nenhum sentido, que já não tinha mais nenhuma razão para viver e que por isso se mataria, pondo fim a tanto sofrimento, ameaçando, a todo o momento, desligar o telefone e dar um tiro na cabeça, consumando a extrema intenção. Mas... não desligou.

Apesar de eu estar com o horário de fechamento da edição estourando (e quem trabalha em jornal sabe o que o tal do “deadline” significa), decidi “dar corda” ao interlocutor, induzindo-o a falar, falar e falar. Depois de meia hora de monólogo, pois só ele falava, pude perceber que essa pessoa desesperada já havia se tornado pelo um pouquinho mais racional. Foi o que me pareceu Muito do que dizia já fazia algum sentido. Em resumo: um momento de atenção, um lampejo de compreensão dos problemas alheios, sem ridicularizá-los e nem assumir ares de “sabe tudo” que distribui conselhos a quem não os pede e nem quer (ademais inúteis nas circunstâncias) pode ter salvado uma vida. Salvou? Não sei! Nunca pude ter certeza. Mas não houve nenhuma notícia de suicídio na cidade nos dias que se seguiram a esse incidente. Portanto, se quem me contatou tinha mesmo a intenção de se matar (e tudo levava a crer que sim), deve, certamente, ter desistido dessa maluquice. E se o fez, algum mérito, certamente, eu tive.

Essa vida pode ter sido salva como, por este impaciente e quase nunca tão compreensivo jornalista? Gastando dinheiro? Executando alguma tarefa extraordinária ou sobreumana? Tentando diagnosticar e curar alguma neurose, mesmo sem entender bulhufas de psiquiatria ou de psicologia? Não! Claro que não! A única atitude adotada e que pode ter dado resultado surpreendente foi a da “paciência para ouvir” o desabafo do interlocutor! Custa sermos humanos ao menos uma vez por dia?! Ou ao menos uma vez na vida?! É fato que quase levei um gancho do jornal por haver estourado o “deadline”. Mas... valeu a pena.

O leitor atento certamente notou que, nos últimos dias, venho trazendo à baila alguns casos de escritores que cometeram suicídio. Sei que é um assunto desagradável, de péssimo gosto e até “politicamente incorreto”. Entendo, todavia, que deva ser desmistificado, tratado às claras, não considerado “tabu”, até para desestimular quem entenda que um ato tão extremo e tresloucado seja “solução” para qualquer coisa. Nunca é! É, sim, transferência de problemas por parte do suicida: para familiares, amigos e a sociedade. Nada como o tempo para mostrar que aquilo que muitas vezes encaramos como insolúvel, não tem as proporções que achamos. O bicho nunca é tão feio como o pintam.

Não raro, em determinadas circunstâncias, confundimos pequenas colinas que devamos escalar com uma cordilheira do porte do Everest, com seus quase nove quilômetros de altura. Posto nas devidas perspectivas, percebemos que o que nos atormenta, apavora e desespera é “café pequeno” se comparado às oportunidades que nos aparecem e que, por alguma razão, em geral por indolência, descrença ou outro motivo qualquer, deixamos escapar.

Compreensão e genuíno interesse pelas pessoas são os melhores remédios para os males da alma. Para os desesperados, o caminho é o do diálogo, do desabafo, da comunicação sem peias e nem amarras, do que os atormenta,  mesmo que a princípio pareça, ou seja, incoerente e corram o risco do ridículo. Claro que essas pessoas vulneráveis precisam contar com “ouvidos” generosos que, certamente, se transformarão na sua talvez única taboa de salvação da queda no abismo. Podem ser a diferença entre a vida e a morte de um ser humano, não raro brilhante e talentoso. O que os suicidas potenciais precisam não é de sermões, de críticas, de recriminações, que só aumentam seu desespero e lhes são, finalmente, fatais. Requerem, apenas, alguém que os ouça com respeito, os compreenda sem ostentar ares de superioridade e não fechem nunca essa “válvula” de escape de tensões, que ao fim e ao cabo. é salvadora, quando bem regulada.


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