Paciência que salva
Pedro J. Bondaczuk
O suicídio do comandante de
um veleiro russo, Alexei Grevscenko, de 42 anos de idade – cujo corpo foi
encontrado, enforcado e pendurado numa árvore num bosque do balneário uruguaio
de Punta del Este, em 11 de outubro de 1989 – foi um tema que, apesar de mórbido, me suscitou
demorada meditação e um longo comentário em jornal na época em que ocorreu.
Esse é um assunto tão delicado, que há. mesmo, uma espécie de pacto tácito e
informal entre nós, jornalistas, para não tratar dele na imprensa, salvo uma ou
outra exceção. São raros os casos desse tipo que ganham manchetes. E quando vêm
a público, através dos meios de comunicação, envolvem quase sempre celebridades
da política, dos esportes, do show business etc., que, por uma razão ou outra,
dão cabo da vida. Afinal, o que leva determinadas pessoas – em geral bem
sucedidas em suas atividades, sem problemas financeiros, com nível de instrução
de razoável para bom – a optarem por esse trágico desfecho?
Que
mecanismo emocional se desregula a tal ponto de levar o poderosíssimo instinto
de sobrevivência (o erótico) a ser sobrepujado pelo de destruição (o tânico)?
Os estudiosos do assunto dizem que, em geral, os que cometem esse ato de
agressão extrema contra si próprios não querem, na verdade, morrer. O que
desejam é chamar a atenção para seus problemas; para sua imensa solidão; para a
carência afetiva que os domina; para seu enorme desamparo emocional e
incontrolável desespero. Como nos tempos atuais as pessoas estão se isolando
cada vez mais, se auto-encarcerando, se mantendo solitárias mesmo quando em
meio a multidões, esses seres carentes e psicologicamente frágeis e vulneráveis
encontram, cada vez mais, dificuldades para se fazerem ouvidos.
Seus
obstáculos de relacionamento crescem dia a dia, na medida em que aumenta seu
isolamento, a ponto de serem levados ao total desencanto e, em casos extremos,
a atentarem, até, contra a própria vida. E pensar que na maioria das vezes uma
boa conversa (e somente isso) os salvaria! Duvidam? Eu não! Até porque já tive
a oportunidade (que reputo de privilégio) – no exercício diário de tentativa de
diálogo com o maior número possível de pessoas, através das páginas do jornal
em que era editor – de ter um caso dramático, desse tipo, pela frente e ter me
saído bem.
Há
algum tempo, coisa de vinte e cinco anos, ou mais, recebi, na redação do
Correio Popular, um telefonema estranho, que a princípio pensei não passar de
mais um trote, de mais uma das tantas brincadeiras de mau gosto a que os
jornalistas e os que lidam diariamente com o público estão sujeitos, tão
insólita era a conversa do interlocutor. O impulso inicial, lógico, foi igual
ao de todos os que recebem ligações inoportunas, de galhofeiros irresponsáveis
que se divertem brincando com coisas sérias. Ou seja, foi o de desligar,
irritado, o aparelho, não sem antes dizer ao engraçadinho poucas e boas ou
mesmo apenas um único, mas sonoro e ‘cabeludo’ palavrão, até para desestimular
novas brincadeiras do tipo.
Uma
espécie de intuição, no entanto, fez com que eu ouvisse até o fim aquilo tudo
que a pessoa do outro lado da linha tentava dizer, de forma confusa e
incoerente, como se estivesse alcoolizada ou drogada. Dava para perceber o
desespero, a angústia e o estado de confusão mental do interlocutor. Para
simular tudo isso, convenhamos, o sujeito teria que ser ator magnífico, mestre,
ou mais, gênio dos palcos e das telas. Em suma, foi uma conversa longa, de mais
de duas horas de duração, entremeada de choro e de ameaças constantes de dar
cabo da vida no momento seguinte, por parte de quem estava do outro lado da
linha (e do outro lado da razão, ao que parece).
O
começo, reitero, foi muito confuso. Mal dava para entender o que essa pessoa
tentava dizer. Ela afirmava, sobretudo, e reiterava a todo o momento, como se
fosse um disco quebrado, que a vida era uma droga, que não tinha nenhum
sentido, que já não tinha mais nenhuma razão para viver e que por isso se
mataria, pondo fim a tanto sofrimento, ameaçando, a todo o momento, desligar o
telefone e dar um tiro na cabeça, consumando a extrema intenção. Mas... não
desligou.
Apesar
de eu estar com o horário de fechamento da edição estourando (e quem trabalha
em jornal sabe o que o tal do “deadline” significa), decidi “dar corda” ao
interlocutor, induzindo-o a falar, falar e falar. Depois de meia hora de
monólogo, pois só ele falava, pude perceber que essa pessoa desesperada já
havia se tornado pelo um pouquinho mais racional. Foi o que me pareceu Muito do
que dizia já fazia algum sentido. Em resumo: um momento de atenção, um lampejo
de compreensão dos problemas alheios, sem ridicularizá-los e nem assumir ares
de “sabe tudo” que distribui conselhos a quem não os pede e nem quer (ademais
inúteis nas circunstâncias) pode ter salvado uma vida. Salvou? Não sei! Nunca
pude ter certeza. Mas não houve nenhuma notícia de suicídio na cidade nos dias
que se seguiram a esse incidente. Portanto, se quem me contatou tinha mesmo a
intenção de se matar (e tudo levava a crer que sim), deve, certamente, ter
desistido dessa maluquice. E se o fez, algum mérito, certamente, eu tive.
Essa
vida pode ter sido salva como, por este impaciente e quase nunca tão
compreensivo jornalista? Gastando dinheiro? Executando alguma tarefa
extraordinária ou sobreumana? Tentando diagnosticar e curar alguma neurose,
mesmo sem entender bulhufas de psiquiatria ou de psicologia? Não! Claro que
não! A única atitude adotada e que pode ter dado resultado surpreendente foi a
da “paciência para ouvir” o desabafo do interlocutor! Custa sermos humanos ao
menos uma vez por dia?! Ou ao menos uma vez na vida?! É fato que quase levei um
gancho do jornal por haver estourado o “deadline”. Mas... valeu a pena.
O
leitor atento certamente notou que, nos últimos dias, venho trazendo à baila alguns
casos de escritores que cometeram suicídio. Sei que é um assunto desagradável,
de péssimo gosto e até “politicamente incorreto”. Entendo, todavia, que deva
ser desmistificado, tratado às claras, não considerado “tabu”, até para
desestimular quem entenda que um ato tão extremo e tresloucado seja “solução”
para qualquer coisa. Nunca é! É, sim, transferência de problemas por parte do
suicida: para familiares, amigos e a sociedade. Nada como o tempo para mostrar
que aquilo que muitas vezes encaramos como insolúvel, não tem as proporções que
achamos. O bicho nunca é tão feio como o pintam.
Não
raro, em determinadas circunstâncias, confundimos pequenas colinas que devamos
escalar com uma cordilheira do porte do Everest, com seus quase nove
quilômetros de altura. Posto nas devidas perspectivas, percebemos que o que nos
atormenta, apavora e desespera é “café pequeno” se comparado às oportunidades
que nos aparecem e que, por alguma razão, em geral por indolência, descrença ou
outro motivo qualquer, deixamos escapar.
Compreensão
e genuíno interesse pelas pessoas são os melhores remédios para os males da
alma. Para os desesperados, o caminho é o do diálogo, do desabafo, da
comunicação sem peias e nem amarras, do que os atormenta, mesmo que a princípio pareça, ou seja,
incoerente e corram o risco do ridículo. Claro que essas pessoas vulneráveis
precisam contar com “ouvidos” generosos que, certamente, se transformarão na
sua talvez única taboa de salvação da queda no abismo. Podem ser a diferença
entre a vida e a morte de um ser humano, não raro brilhante e talentoso. O que
os suicidas potenciais precisam não é de sermões, de críticas, de
recriminações, que só aumentam seu desespero e lhes são, finalmente, fatais.
Requerem, apenas, alguém que os ouça com respeito, os compreenda sem ostentar
ares de superioridade e não fechem nunca essa “válvula” de escape de tensões,
que ao fim e ao cabo. é salvadora, quando bem regulada.
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