Não se amordaça a consciência
Pedro J. Bondaczuk
A África do Sul viveu, ontem, um dos dias mais
tensos da sua ainda curta história republicana. As ruas e praças de suas
cidades, geralmente repletas de pessoas dispostas, cheias de vigor e
inteligência, estavam vazias. Em nenhuma delas circulavam os ônibus coletivos,
conduzindo, como seria de se esperar numa segunda-feira, trabalhadores para
suas ocupações rotineiras.
Nas fábricas, as máquinas ganharam um novo dia não
previsto de ociosidade e os comerciantes não abriram as portas dos seus
estabelecimentos. As escolas não tiveram em seus pátios os sons das risadas e
inocentes, de sempre, das crianças e até as igrejas cerraram suas entradas,
como que num protesto dos céus.
Ontem foi o "Dia do Medo" em toda a África
do Sul, quando cerca de 20 milhões de negros, que são considerados
"estrangeiros" no próprio país que os viu nascer (e que eles tanto
ajudaram a construir) por uma minoria (de quatro vezes a menos) de brancos,
recordaram um dos raros momentos de grandeza pelo qual eles tanto se orgulham.
Eles reverenciaram, em silêncio, nas suas casas e barracos, os 618 mortos e
mais de dois mil feridos do levante do gueto de Soweto, ocorrido há exatos dez
anos.
Desde então, esse país progressista, dotado pela natureza
de tantas riquezas, entrou num virtual estado de guerra civil, não declarado
por nenhuma das partes, mas presente sinistramente no quotidiano de cada
sul-africano. E os mortos e feridos dessa luta desigual, onde estranhamente a
maioria é muito mais fraca do que a minoria, só fizeram aumentar.
Alguns foram vitimados em virtude de desavenças
entre a própria comunidade majoritária, infiltrada por muita gente que não sabe
sonhar alto e que se contenta com simples migalhas que caem da mesa dos
poderosos. Outros, em maior proporção, vítimas da repressão de um dos aparatos
policiais mais cruéis, desumanos, ferozes e bem montados de tantos quantos se
tenha notícia em qualquer parte ou época da história. Outros, ainda,
simplesmente imolados, sem possibilidade alguma de defesa, assassinados em
prisões onde foram atirados após arremedos de julgamentos (quando houve algum),
como Steve Byko e o poeta negro Benjamin Moloise, que morreu enforcado, no ano
passado, com o nome do seu grande líder nesta guerra desigual, Oliver Tambo,
nos lábios.
Muita gente mais tombou por causa da discriminação
cega e obcecante, que tem empanado a visão de tantos homens brilhantes, que se
alienam da realidade acreditando apenas naquilo que desejam crer. Como se todos
os fatos que movem os povos e constróem as suas histórias dependessem
exclusivamente da sua vontade, da sua fantasia ou da sua prepotência.
Algumas pessoas, inclusive, foram mortas, ontem,
nesse dia de silêncio, tensão e medo, em incidentes isolados, a despeito da
monumental operação de guerra montada pelo aparelho policial sul-africano. As
notícias a respeito de distúrbios estão rigorosamente censuradas, com base em
mais um estado de emergência decretado em todo o país, na semana passada, mais
severo do que o anterior. Mas as poucas que vazaram, deram conta de oito mortes
entre os negros, na data que lembrou o décimo aniversário do levante do gueto
negro do Soweto, uma enorme favela situada nos arredores de Johannesburgo, de
cerca de dois milhões de habitantes.
Apenas no correr dos próximos dias, os jornalistas
terão condições de informar o que realmente ocorreu na África do Sul, nesse dia
de medo, de incerteza e de uma ira (a muito custo contida) contra aqueles que
ainda teimam em dividir seres humanos por raça, cor da pele, fortuna ou
ideologias.
Os repórteres sempre conseguem, de uma forma ou de
outra, o seu intento. Afinal, a imprensa, quando livre, é a autêntica
consciência dos povos. É o compêndio vivo da história das civilizações,
registrando os seus dramas no instante exato em que eles ocorrem, marcados
fundamente pelas suas motivações e por uma carga inevitável de emoções
contraditórias.
Por isso, relata os acontecimentos como eles se
deram, com as chamas da verdade emanando candentes das páginas dos jornais. E
são esses mesmos jornalistas que um sistema discricionário, condenado pela
totalidade dos povos (livres ou não), tenta amordaçar. Essa imprensa, odiada
pelos tiranos, um dia haverá de estampar em manchetes enormes a vitória da
justiça e do bom senso, dure o tempo que durar. Afinal, não é sempre assim que
acontece? Os ditadores nunca conseguem aprender essa lição!
(Artigo publicado na página 11, Internacional, do
Correio Popular, em 17 de junho de 1986)
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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