Memória e esquecimento
Pedro
J. Bondaczuk
A mente humana, a
despeito de todos os avanços e descobertas ocorridos nas várias disciplinas que
se propõem a estudá-la, ainda é um grande, um profundo, um insondável mistério.
Sobretudo, no que se refere ao que chamamos, genericamente, de “memória”. Esse
é um tema que sempre me fascinou, inclusive como escritor. Afinal, como criar
personagens minimamente verossímeis sem um entendimento, mesmo que elementar,
desse processo tão complexo, que se refere, basicamente, a lembranças e ao seu
oposto, o esquecimento? Ambos dependem de nossa vontade? Apenas um deles
depende? Em caso afirmativo, qual? Ou não temos a menor possibilidade de
interferir em nenhum dos dois? Lembramos “sempre” do que queremos? Conseguimos
esquecer o que nos desagrade, traumatize e magoe quando quisermos? Entendo que
a resposta correta, em ambos os casos, seja enfático “não”!!!
Não conheço, e jamais
soube que existisse, alguém que conseguisse forjar alguma amnésia parcial, mais
propriamente, seletiva, que o levasse a esquecer, por exemplo, pessoas que
melhor seria nunca ter conhecido. Ou apagar da memória as que o magoaram
fundamente – como alguém que tenha amado extremadamente e que o traiu, ou o
maltratou ou o feriu de qualquer maneira – ou fatos dolorosos e traumáticos de
que foi vítima ou meramente testemunha. Ou tudo o mais que de desagradável e
penoso tenha ocorrido e que, à simples lembrança, renove terríveis sofrimentos.
Antes tudo isso fosse possível. Infelizmente, não é. Quantas pessoas, vítimas
de profundas desilusões amorosas, já não estiveram à beira da loucura ou da
destruição por não conseguirem esquecer quem as desiludiu?! Quantas outras,
emocionalmente mais frágeis e instáveis, não acabaram destruídas, inclusive
cometendo suicídio, por esse motivo?! Quantas não recorreram ao álcool ou às
drogas no intento de esquecer quem tanto as magoou?! Milhares, milhões, quiçá
bilhões ou sabe-se lá quantas.
Todas fizeram o
possível e o impossível para esquecer... e não esqueceram. Não, pelo menos, por
completo (e isso, referindo-se aos equilibrados e sensatos). Volta e meia, um
filme, uma música, um poema ou outra coisa qualquer, traz subitamente à
lembrança a pessoa que tanto se empenharam em esquecer e... não conseguiram. E
mesmo que a recordação ressurja atenuada – o que o tempo, de vez em quando, mas
não sempre, consegue fazer – não deixa de renovar a dor, a mágoa e o sofrimento
originais. Ademais, quanto mais intenso
foi o amor, maior é, óbvio, a dificuldade de apagar a imagem dessa amada infiel
ou maldosa ou indiferente da memória. Por que? Porque lembrança e esquecimento
ocorrem à nossa revelia. Não lembramos só o que queremos. Lembramos o que
“lembramos”. Dito assim, soa estranho,
mas é o que acontece. O mesmo vale, claro, para o esquecimento.
Quantos de nós já não
passamos pelo constrangimento de encontrar pessoas, que foram importantes em
nossas vidas, e que não reconhecemos quando topamos com elas? Às vezes, foram
colegas de classe com quem chegamos a ter relacionamentos até bastante amistosos,
se não intensos. No entanto... Suas figuras e suas ações apagam-se por completo
da memória. É mais um caso em que o esquecimento ocorre à nossa revelia. Não
queríamos esquecer, mas... esquecemos. Vocês não acham estranho esse
comportamento da memória? Eu acho. Aliás, considero estranhíssimo e, não raro,
constrangedor, claro.
A propósito de
esquecimento, localizei, por acaso, um poema de Pablo Neruda, exatamente com
esse título, no livro “Os versos do capitão”, primorosa edição bilíngüe da editora
Bertrand Brasil, com tradução do poeta Thiago de Mello. O volume em questão
estava casualmente em minha mesa de trabalho, quando, nem sei por que, resolvi
folheá-lo. Abri-o a esmo, antes de redigir estas reflexões. E em que página
vocês acham que caiu? Exatamente na que traz o poema abaixo, intitulado,
justamente, “O esquecimento”. Seria casual mesmo ou haveria algo em minha
mente, alguma recordação de leitura passada, que tenha conduzido minha mão
justamente na direção desses versos específicos e não de outros quaisquer? Vá
se saber! Nosso cérebro é tão surpreendente, tão misterioso e tão complexo que se pode esperar tudo dele. Mas leiam o
poema de Neruda e tirem dele suas próprias conclusões. Eu já tirei as minhas. :
“Todo
o amor numa taça
imensa
como a terra, todo
o
amor cheio de estrelas e de espinhos
te
entreguei, mas andaste
com
pés pequenos, calcanhares sujos,
sobre
o fogo, apagando-o.
Ai,
grande amor, pequena amada!
Não
me detive na luta.
Nunca
deixei de perseguir a vida,
busquei
a paz, sonhei pão para todos,
mas
te alcei em meus braços,
te
cravei nos meus beijos
e
te olhei como jamais
tornarão
a te olhar olhos humanos.
Ai,
grande amor, pequena amada!
Tu
não mediste então minha estatura,
e
ao homem que para ti afastou
o
sangue, o trigo, a água
confundiste
com
o pequenino inseto que te caiu na saia.
Ai,
grande amor, pequena amada!
Não
esperes que te olhe na distância
para
trás, permanece
com
o que te deixei, passeia
com
minha fotografia atraiçoada,
eu
seguirei andando,
abrindo
largos caminhos contra a sombra, fazendo
suave
a terra, repartindo
a
estrela para os quer vêm.
Fica
no teu caminho.
Já
chegou a noite para ti.
Talvez
de madrugada
nos
vejamos de novo.
Ai,
grande amor, pequena amada!”
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